A música de

Nora Ney: uma voz poética e política reivindica memória em seu centenário

por Raphael Fernandes

quinta, 30 de junho de 2022

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Nos anos 1950, o rádio era certamente um dos maiores objetos de desejo dos brasileiros. Esse aparelho, que revolucionou as tecnologias de comunicação por sua capacidade de transmitir ondas sonoras sem fio e a distâncias intercontinentais, foi responsável direto pelo nome artístico da carioca Iracema de Souza Ferreira. Já atuando profissionalmente na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, Nora May, com eme, era responsável pelo repertório em inglês, cantando de George Gershwin a Ella Fitzgerald. Uma ouvinte de Minas Gerais, confundida pelas transmissões que pecavam em nitidez e muitas vezes davam asas à criatividade dos ouvintes, escreveu uma carta à Rádio Tupi, pedindo mais músicas cantadas por uma tal de Nora Ney. A aliteração caiu nas graças de Iracema, de seus colegas e dos ouvintes, e, assim, entrou para a história da música brasileira e completa em 2022 seu centenário. 

Nascida no bairro da Olaria, nos conta o historiador Alcir Lenharo (1995), que começou sua atividade musical ainda bem jovem, nos anos 1940, de maneira quase amadora, na Rádio Cruzeiro do Sul, no programa do maestro Napoleão Tavares. O mesmo em que, outro grande nome do rádio, Carmen Costa, também soltou suas primeiras canções. Depois, fez algumas participações na rádio Mayrink Veiga, a convite de Iara Salles, do Trio de Osso, mantendo a linha das músicas estadunidenses, fruto de sua excelente pronúncia em inglês. Após o casamento com seu primeiro marido, Cleido Maia, e já com uma filha de três anos, Vera Lúcia, tornou-se vizinha de integrantes do conjunto Namorados da Lua, os quais recebiam com frequência a visita do cantor Lúcio Alves para sarais na cobertura do edifício. Lúcio conheceu Nora num desses encontros musicais e a levou para conhecer outra turma, a do Sinatra-Farney Fan Club, onde ela tomou contato com artistas como Dick e Cyll Farney, Carlos Manga, Jhonny Alf e João Donato. 

Foi em 1951 que entrou para a Rádio Tupi, onde, além do repertório estadunidense, teve que cantar samba, ao qual aplicou seu estilo declamatório apurado pelas músicas estrangeiras à música brasileira de então. E assim, entre o trabalho na rádio e nas boates como a Midnight, no hotel Copacabana Palace, foi conhecendo figuras que seriam centrais em sua carreira, como o maestro Copinha, que fez o arranjo dos seus primeiros discos, ainda em 78 rotações, com grandes sucessos do compositor Antônio Maria como Ninguém me ama e Menino grande, alavancando as vendas da gravadora Continental. O sucesso de Ninguém me ama rendeu à cantora o primeiro disco de ouro da indústria fonográfica brasileira, em 1952.

Maria se identificou bastante com o jeito de Nora cantar e deve a ela o início de sua projeção como compositor: “[...] a voz de Nora Ney surge como de recantos penumbrosos, com um odor de sensualidade, caindo numa morbidez que a todos contagia... um halo de ficção e mistério marca a sua figura” (CURY, apud MELLO, 2017). Seu modo de cantar, uma mistura de inspirações estadunidenses do estilo crooner, e das cantoras de bolero – gênero muito em voga nos anos 1940 e 1950 – como Elvira Rios, resultavam em algo que oscilava entre o recitativo e surpreendentes golpes de um vibrato macio; assumia sua própria oralidade, contestando padrões fonéticos impostos pelo rádio da época: “sua dicção excepcional, autenticamente carioca nos erres guturais esses em xis [...] uma tessitura de voz quase masculina” (MELLO, 2017), o que fez de Nora, em certa medida, um contraponto a grandiloquência de cantoras como Dalva de Oliveira e  ngela Maria, prenunciando novas relações com o microfone que só se estabeleceriam a partir da Bossa Nova.

Na Rádio Nacional, a principal do país nos anos 1950, Nora Ney esteve sob a batuta de Radamés Gnattali, participando de diversos programas, como Um milhão de melodias, Quando canta o Brasil e Programa César de Alencar (BARBORSA, DEVOS, 1985), normalmente cantando sambas-canções, gênero do qual é uma das principais representantes. A Nacional concentrava o que era tido como o cast artístico de primeira linha naquele período, e programas como esses eram aclamados pela audiência e pela crítica especializada (PINTO, 2014). Foi por intermédio de Radamés Gnattali que a estrela do samba-canção conheceu o então arranjador Antônio Carlos Jobim, na Continental. Em 1954, ela participou da gravação da Sinfonia do Rio de Janeiro, obra de Billy Blanco e Tom Jobim, orquestrada por Gnattali, e, no mesmo ano, gravou Solidão, uma das primeiras obras colocadas em disco do futuro bossanovista e possivelmente seu primeiro sucesso. 

Embora tenha conseguido fama e prestígio, Nora Ney não chegou a ser um ídolo popular, não era exatamente uma “rainha do rádio”, como fora Emilinha Borba ou Marlene. Relata Ruy Castro (2015) que tentaram lhe organizar um fã-clube, mas a cantora condicionou seu apoio a atividades com alguma função social no grupo, como alfabetização e oficinas profissionalizantes, coisas que favorecessem sobretudo a expansão da mulher na sociedade. A veia política de Nora acabou por dissipar a ideia daqueles fãs, mas sua politização já vinha desde o primeiro casamento e ocorrências traumáticas da vida privada.


Garçom, acende essa luz! Vou cantar tudo, tudo que houve entre nós... 

Nora confessou ao historiador Alcir Lenharo (1995) que, ainda adolescente, sofreu tentativa de abuso sexual por parte de um empregado de um amigo de sua família e que, na época, o casamento era visto como uma proteção a esse tipo de risco. Tinha um emprego de contabilista, que abandonou após se casar com Cleido Maia, seu primeiro marido. Ele foi descrito por ela como alguém irresponsável e violento, não queria que ela trabalhasse fora, muito menos como artista. Na ausência de um companheiro zeloso, “[...] cantar profissionalmente fora a maneira que encontrara para sustentar sua família” (CASTRO, 2015). Mas, o estrelato já havia chegado, e, no mesmo ano de 1952, quando do sucesso estrondoso de Ninguém me ama, o então marido teve uma crise de ciúmes e obrigou-a, ameaçando-a com uma faca, a ingerir uma grande quantidade de comprimidos para dormir, fato confessado durante o inquérito policial por ele mesmo. O objetivo era que Nora morresse, mas que parecesse que fora suicídio. A história gerou burburinho na imprensa da época, e associada aos versos de Ninguém me ama, ganhou um tom ainda maior de dramaticidade. É interessante pensar a época como um todo. Não era a primeira vez que um escândalo conjugal envolvendo artistas recebia publicidade.  Os embates entre o casal Dalva e Herivelto, pouco tempo antes, foi emblemático. Já se levantavam publicamente discussões sobre o divórcio, emancipação feminina... ao mesmo tempo, histórias como essa de Nora acabavam se confundindo com o imaginário das radionovelas. Então, temos aí o despontar de uma cultura midiática no Brasil, em que as pautas sociais misturam conteúdos jornalísticos com as produções artísticas, em larga escala pública.

Nora Ney tinha um lado político pouco explorado pelos textos e materiais que se publicam sobre ela: um legado político que envolve a militância no Partido Comunista Brasileiro, que ela iniciou desde o primeiro casamento com o Cleido Maia, e que continuou com o segundo marido, o cantor Jorge Goulart. Ambos participavam de reuniões políticas, atuaram junto aos jovens do Centro Popular de Cultura – CPC - da União Nacional de Estudantes – UNE, no começo dos anos 1960; “Nora militava no grupo de mulheres do qual participavam Neusa Brizola, Eugênia Moreira. Tornou-se amiga de Célia Guevara, mãe do guerrilheiro, que também comparecia aos congressos do movimento aqui no brasil” (LENHARO, 1995, p. 244). Sob a relativa liberdade do governo Juscelino Kubitschek, em 1958, o casal excursionou para a União Soviética comandando uma turnê com músicos brasileiros, a exemplo das cantoras Dolores Duran e Maria Helena Raposo, o Conjunto Farroupilha, e o conjunto do saxofonista Paulo Moura, abertos à inclusão de músicos locais por onde se apresentassem. 

Nessa área dos países socialistas a atuação seria a partir daí quase exclusiva dos cantores Jorge Goulart e Nora Ney, que durante 15 anos realizavam viagens periódicas, empresando a cada vez mais ritmistas populares e artistas de menor categoria (sic) (TINHORÃO, 1969, p. 85).

Após o golpe de 1964, Nora e Jorge receberam a pecha de “artistas comunistas” e não conseguiam mais arranjar trabalho, tiveram que partir para o autoexílio em Portugal, onde se estabeleceram graças ao auxílio do então deputado Rocha Brochado, amigo do casal. Conseguiram, neste período, um contrato para excursionar pela África lusófona, destacadamente em Angola, em 1969. No retorno ao Brasil, viraram espécie de “carta fora do baralho”, nas palavras de Jorge: “A turma do violão e banquinho não deu a menor colher de chá pra gente, não. Começamos a ficar sem alternativas” (LENHARO, 1995, p. 251).

Apesar da baixa demanda pelo trabalho de Nora Ney a partir dos anos 1970, a cantora fez alguns trabalhos importantes, tal como o LP Jubileu de Prata, em que divide gravações de sambas e sambas-canções com Jorge Goulart, de compositores como Cartola, Lupicínio Rodrigues, Ivone Lara, Noel Rosa e Paulo Vanzolini; deste último, a célebre Ronda, na voz de Nora Ney, quase um corolário dos hinos aos romances boêmios. Ela chega à era do Cd pelo projeto As eternas cantoras do rádio, que renderam dois álbuns que contam, além de Nora, com as cantoras Rosita Gonzales, Violeta Cavalcanti, Zezé Gonzaga, Ellen de Lima e Carmélia Alves.

Certamente, o cartão de visitas dela é Ninguém me ama. Mas, há muitas outras canções que marcaram sua carreira, como Menino grande, Bar da Noite, Preconceito, Aves Daninhas, assim como muitos compositores amplamente conhecidos, tal qual o já mencionado Antonio Maria, além de Lupicínio Rodrigues, Denis Brean, Billy Blanco... e regravações de outras músicas, como Risque, de Ary Barroso, que foi lançada por  Aurora Miranda, porém obteve mais sucesso na voz de Nora. Obras que a levaram a ser especialmente apreciada por “[...] grupos de estigmatizados sociais: prostitutas, homossexuais, presidiários, que buscam conforto psicológico na experiência de vida da cantora e em suas gravações musicais” (LENHARO, 1995, p. 108).

Algumas dessas canções, hoje, fazem parte do repertório de artistas como Maria Bethânia e Leila Pinheiro, e fizeram parte do trabalho de outras cantoras consagradas, como Maysa e Dolores Duran. São marcas inegáveis na cultura musical brasileira. No conjunto de sua obra, Nora Ney foi não somente uma das criadoras do estilo de cantar moderno que predominaria a partir dos anos 1960, mas um exemplo de artista que se posiciona politicamente, que renuncia a um estrelato mítico, possuidora de rara coerência poética, e uma inspiração feminista.



Raphael Fernandes Lopes Farias é doutor em Comunicação e Cultura Midiática pela Universidade Paulista – UNIP. Pesquisador do Centro de Estudos em Música e Mídia – MusiMid e do Grupo ContemporArte (UFMT). É coorganizador do livro “Uma vereda tropical: a presença da canção hispânica no Brasil”, Letra e Voz, 2020.

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