Colunista Convidado

No dia do disco, uma crônica de Mário Sette sobre o poder da música gravada

Por Luiz Ribeiro Fonseca

quinta, 20 de abril de 2023

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Crianças ao redor de um gramofone (Uzbequistão, meados dos anos 1920). Reprodução.


Fonografia e música brasileira são coisas simplesmente inseparáveis.

Se Rodrigo Faour sugere que a consolidação da indústria fonográfica foi essencial “para potencializar ainda mais a vocação do brasileiro para a música”, Luiz Tatit afirma ser a gravação um “recurso de fixação” que ajudaria a fundar boa parte da memória musical brasileira. De cançonetas, tangos e polcas a sambas, maracatus e rocks, as tecnologias de gravação e reprodução sonora quase sempre estiveram atreladas com a dinâmica dos gêneros musicais – urbanos e rurais – e seus cantores, compositores e instrumentistas.

Dito isto, em um feriado importante – embora quase despercebido no calendário – como o dia do disco, proponho que voltemos no tempo, mais especificamente entre o final do século XIX e o início do século XX. 

Naquele período, nascia o cronista e memorialista pernambucano Mário Sette (1886-1950). Em 1935, Sette publica o livro de crônicas “Maxambombas e Maracatus”, uma homenagem a sua infância na cidade do Recife, cercada de trilhos urbanos (as populares maxambombas) e de intensa agitação cultural durante a época do Carnaval.

Em uma dessas crônicas, intitulada “O Grafofone”, duas famílias vizinhas se reúnem para ouvir trechos de árias e pequenas canções ao redor de um instrumento que parece ser o fonógrafo – embora todos o chamem de gramofone. Como Sette destaca, os membros das duas famílias buscam prestar atenção absoluta à música, em uma espécie de alusão à escuta quase religiosa dos grandes concertos, mas não resistem a fazer piadas e interagir com a máquina. 

Livro Maxambombas e Maracatus (1958, 3 ed.), de Mário Sette. Reprodução.

Ali, o aparato cria um espaço de escuta diferente daquele dos teatros, cafés ou festas de rua. O fonógrafo e/ou o gramofone reformulam o contato do ouvinte com aquilo que está sendo reproduzido. Era possível, de uma maneira quase inédita, acelerar, desacelerar, e brincar com a tonalidade e ritmo da música. Se hoje essa relação é mediada por aplicativos, softwares ou outros dispositivos de forma quase trivial, na época de Sette era objeto de absoluto fascínio e, posteriormente, de experimentação tecnológica de cunho artístico.

Fiquemos, portanto, com a crônica “O Grafofone”, que fala – ou soa – por si só.


O GRAFOFONE 

De porta a dentro, com a sem-cerimônia de vizinha amiga, a filha do coronel Evaristo investe radiante e alvoroçada até a sala de jantar:

– Vamos ver uma novidade grande, vamos todos!
– Que foi, menina? Sua mãe teve menino?
– Que menino, que nada, D. Rosa! Papai tirou no clube um gramofone e já mandou para casa. Venham ouvir.

Todos se animaram. O gramofone era, de fato, uma cousa novíssima no Recife. Poucos já o haviam ouvido. E esses mesmos, na maioria, de longe. Muita gente não sabia ainda nem como era. Neste rol D. Rosa, muito caseira, com onze filhos para criar.

Foram todos. À vontade porque moravam perto e já se estava à boquinha da noite.

Demais a Rua Velha era tão sossegada!

Sobre a mesa de refeição coberta por um pano de oleado o coronel Evaristo depunha solenemente, como num rito religioso, a máquina falante. Uma caixa de madeira amarela, com um cilindro de metal, um braço acústico, um diafragma de diamante, e a corneta preta.

Todos miravam o aparelho com ares estranhos, curiosos, tímidos.

– E fala mesmo, Sinhàzinha?
– Fala e canta. Toca música.
Tibes votes! É da gente se benzer.

O coronel dá corda. Desenfia de uma caixinha de papelão e tubo de cêra de carnaúba. Mete-o no cilindro de metal, ajusta o diafragma. E anuncia:

– A ária do Rigoletto.

Expectativa, silêncio, beliscão num menino que faz uma pergunta.

Fanhosamente o tenor entoa o

La dona é mobile

– Esplêndido!
– Eu parecia estar no Santa Isabel
– Você se lembra daquela companhia do ano passado, Zezé?
– Agora, uma cançoneta.

Muda-se o tubo. Sempre com uma gravidade de quem oficia. E sai a cançoneta em voga:

Fui com a familia
Pra revista
Em honra de 13 de Maio…

Risadas. Exclamações. Aplausos.

Segue-se em dobrado. Um solo de clarinete. Um trecho de violino. E por fim a ária final da Traviata.

Um filho de D. Rosa reconhece a música e grita:

– Sinhá Tonha canta isso também. É assim:

Iaiá, tem tabaco aí
Me dê uma pitada
Que eu quero dormir…

– Menino! Você, em casa, vai apanhar.
– Oxente, mamãe! Sinhá Tonha não canta quando lava roupa?

Ainda há uma canção da Gran Via, O Caballero del gracia. E a audição maravilhosa termina.

O coronel promete comprar no dia seguinte outros cilindros na Violeta. Soubera que tinham recebido novidades. A valsa do Tim-Tim, a modinha Bem sei que tu me desprezas, a marca da Aída, a cançoneta Meu Bem Estou Cortado Aí?

Saem os vizinhos depois dos adeuses e dos beijos numa face e outra.

Na rua:

– Que coisa. Parece natural!
– Depois disso, minha gente, não há mais nada que se inventar…




Referências

FAOUR, Rodrigo. História da música popular brasileira sem preconceitos: dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970 - vol. 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.

SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. 3. ed. São Paulo: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1958.

TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.



Luiz Ribeiro Fonseca é Bacharel em Comunicação (UFPE), estudante de mestrado na Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFF), e intercambista no Programa de Estudos do Sul Global da Universidade de Tübingen (Alemanha). Pesquisa fonogramas comerciais de maracatu gravados na primeira metade do século XX. 




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