A música de

Nestor de Holanda - 100 anos

por Icaro Bittencourt

terça, 28 de dezembro de 2021

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O campo da música popular no Brasil foi constituído, desde pelo menos o início do século XX, não somente pela obra de diferentes artistas mas também pelo trabalho de divulgação e crítica de uma infinidade de jornalistas e intelectuais que colaboraram para a disseminação e reprodução simbólica da música em diferentes canais de comunicação e setores da sociedade.

Muitos deles, devido à estreita afinidade com o universo artístico, também fizeram parte do rol de compositores que marcaram as primeiras gerações do campo da música popular brasileira, demonstrando a simbiose entre o mundo das letras e dos meios de comunicação com a expressão artística musical. Como bem apontou o sociólogo Dmitri Fernandes, estes podem ser considerados os “intelectuais êmicos” da música popular, ou seja, aqueles que, dentro da própria estrutura do campo, ajudaram a legitimar e disseminar as expressões musicais que constituíram o núcleo do nascente mercado de bens simbólicos no Brasil.

Um desses intelectuais e artistas versáteis foi o pernambucano Nestor de Hollanda Cavalcanti Neto (Vitória de Santo Antão, Pernambuco, 01/12/1921 - Rio de Janeiro, 14/11/1970), mais conhecido na literatura e na imprensa simplesmente como Nestor de Holanda e cujo nascimento completou agora cem anos. Atuando em diferentes frentes da cultura, foi escritor, jornalista e compositor multifacetado, reconhecido pela escrita bem humorada e pela crítica afiada aos rumos que tomava o rádio e também a luta pelos direitos autorais de compositores no Brasil.

Nos meios de comunicação, atuou em diferentes frentes, tanto na imprensa escrita como no rádio e na televisão. Trabalhou em muitas empresas diferentes, como Última Hora, Diário de Notícias, Rádio Nacional, Rádio MEC, TV Excelsior, Continental, entre outras. Nelas, exerceu diversas funções, como as de redator, editor, produtor e publicitário, sendo uma das figuras de destaque do meio entre o final das décadas de 1940 e 1960.

Nestor também foi membro, entre outras sociedades de autores, da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem), da qual chegou a ser secretário da diretoria eleita em 1949 e também diretor dos primeiros números do Boletim da associação. No primeiro número da publicação, inclusive, o jornalista polemizou de maneira feroz com a União Brasileira de Compositores (UBC), da qual a Sbacem foi uma dissidência. Conforme podemos ver em citação do autor feita pela pesquisadora Rita Morelli, o compositor e jornalista não media palavras para polemizar sobre o que considerava necessário: "As tentativas que até então foram feitas para a organização de uma sociedade que fosse a verdadeira aspiração dos compositores falharam todas. Elas traziam sempre de reboque os componentes da quadrilha organizada de salteadores de direitos autorais, quadrilha esta que todos já conhecem. Mas aquelas tentativas foram de utilidade para os compositores, porque serviram, quando nada, para denunciar todos os membros do conjunto desonesto que sempre motivou a ruína da música brasileira”.

Se entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950 Nestor envolvia-se com as questões das sociedades de direito autoral, em 1954 o escritor integrou uma das mais importantes publicações na área da música até então, a Revista da Música Popular, criada por Lúcio Rangel e Pérsio de Moares, e que teve 14 edições até 1956. Na publicação, Nestor foi assíduo colaborador através da coluna “O Rádio em 30 dias”, na qual avaliava criticamente a programação radiofônica nacional e comentava sobre diferentes artistas que atuavam no meio, como Angela Maria, Marlene, Luiz Gonzaga, Carmélia Alves, Cauby Peixoto, entre outros.

Nestor de Holanda e Leny Eversong. (Anos 50) / Fonte da imagem: Facebook

Era constante em seus textos a crítica a um modelo demasiadamente comercial da programação das rádios que, segundo ele, perdiam em qualidade e deixavam de educar musicalmente o público ouvinte. No número quatro da RMP, o autor escreveu o seguinte: “Fazer rádio com discos - isto é: com gravações comerciais, e um locutor anunciando o ‘vamos ouvir’ e ‘acabaram de ouvir’, e textos de propaganda de casas de retalhos a preços de retalhos, e informativos compilados dos jornais diários - fazer rádio assim é como oferecer uma peixada de sardinha de lata, num almoço aos amigos.”

Acompanhando sua verve ferina sobre o que considerava a decadência do rádio, Nestor também lançou mão de interpretações pejorativas e preconceituosas que acabaram se consagrando na crítica ao tema, como analisou Dmitri Fernandes (2018, p. 52-53): “Quando as rádios começaram a montar plateias abertas ao público em seus estúdios - em meados de 1935 -, a presença constante de mulheres negras como assistentes dos programas radiofônicos acabou motivando um jornalista, Nestor de Holanda, a escrever uma crônica  em que as chamava pejorativamente ‘macacas de auditório’, por causa da cor negra e do modo inadequado e histérico como se portavam quando em presença de seus ídolos, bem distante do padrão blasé esperado pelo crítico.” Nesse quesito, é importante considerar que, se diversos intelectuais promoviam os valores das expressões culturais populares, como era o caso de Nestor, de alguma maneira também tentavam dar forma a uma representação do “popular” que ocultasse algumas das origens sociais e étnicas da nossa música e/ou implicasse em formas de fruição mais afeitas aos padrões da vida burguesa.

A atuação do escritor no campo da música popular não parou por aí. Nos anos 1960, Nestor de Holanda também participou de iniciativas importantes para o campo da música popular. Foi um dos responsáveis pelas inscrições das músicas no Rio de Janeiro para o I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965, iniciativa fundamental que inaugurou a “Era dos Festivais”. Já no ano seguinte começou a integrar o Conselho Superior de Música Popular Brasileira, ao lado de outros intelectuais, jornalistas e compositores como Ary Vasconcelos, Cruz Cordeiro, Tinhorão, Jota Efegê, Lúcio Rangel, Marisa Lira, Sérgio Cabral, Vasco Mariz, Almirante, Hermínio Bello de Carvalho, Ricardo Cravo Albin, Vinicius de Moraes, entre outros.

Na literatura, Nestor foi autor de diversos títulos em uma profusão de gêneros: romance, crônicas, poemas, ensaios, teatro, adaptações (fez uma versão da Ilíada para o público juvenil) e memórias. Neste último, deixou um legado significativo na obra Memórias do Café Nice: Subterrâneos da Música Popular e da Vida Boêmia do Rio de Janeiro, lançada em 1969 pela Editora Conquista e que, esgotada, encontramos hoje poucos exemplares à venda e por um alto valor. Essas memórias tinham o sabor de quem frequentava a boemia e era também parte dela como compositor. Nesse quesito, Nestor de Holanda foi parceiro de inúmeros outros músicos e compositores em mais de cem obras, desde a sua juventude entre Recife e Olinda e depois no Rio de Janeiro.

Compôs diversos sambas, marchas, sambas-canção, frevos-canção e outros gêneros que expressavam tanto sua origem pernambucana quanto sua vida carioca. Tão diversas quanto as composições foram as parcerias que estabeleceu, com Levino Ferreira, Ary Barroso, Abelardo Barbosa, Elpídio Pereira, Moreira da Silva, Luiz Gonzaga, Benedito Lacerda, entre outros.

Apesar dessa intensa trajetória, Nestor de Holanda, assim como outros personagens significativos da cultura brasileira, ainda carecem de atenção mais dedicada de pesquisadores. O caráter multifacetado de sua inserção na cultura brasileira do século XX é um prato cheio para que futuras investigações descortinem os caminhos cruzados entre música, literatura e crítica cultural no Brasil contemporâneo.



Icaro Bittencourt é doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor no Instituto Federal Catarinense (IFC) – Campus São Francisco do Sul.


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