Na Ponta do Disco

Maria Bethânia e Omara Portuondo: a Bahia inseparável de Cuba

por Marlon Marcos

quarta, 26 de maio de 2021

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O ano foi 2008. Duas mulheres maduras, patrimônios vivos de suas respectivas culturas, mentoras da arte do canto popular, acionadoras da grandeza afrodiásporica das Américas, negruras de dois lugares pousados na força inventiva da ancestralidade afroindígena entre todos e todas nós, ocasionaram um histórico encontro musical, excursionando por algumas capitais brasileiras, elas, duas das maiores cantoras do mundo de seu tempo: a santoamarense Maria Bethânia e a havanesa Omara Portuondo.

Os mares da Bahia abraçando-se com as águas oceânicas de Cuba. Atmosfera perfilada de orixás femininos... O mimo cantante de Oxum, a majestade aquática de Iemanjá na linha de comando de Oyá e Xangô. E nos entremeios católicos: Santa Bárbara e Nossa Senhora.

Maria Bethânia foi a grande anfitriã da voz potente de Omara Portuondo que nos trouxe o tradicional e o contemporâneo de uma das musicalidades mais expressivas do planeta: a cubana. Omara, senhora maior do Buena Vista Social Club, afiada nas feições da África reinventada em Cuba, entre trocas culturais que afirmaram as contranarrativas que deram aos negros o protagonismo da melhor criação musical popular do mundo.

Maria Bethânia e Omara Portuondo durante apresentação (Foto: Reprodução/G1)

Poderíamos dizer que ambas são resultados da civilização do tambor. E estão impregnadas em filosofias ancestrais bantu e iorubá, santeria e candomblé. Tambor como transmodernidade como quis o intelectual Enrique Dussel em diálogos com a filosofia da libertação para a América Latina. O colo afrolatino do potentado Omara Portuondo em cânticos que despertam o corpo e sossegam a alma com belezas. O movimento sagrado do corpo-pássaro de Maria Bethânia que educa o mundo e afrobaianiza a humanidade em sua presença de artista e pensadora social.

O canto de Maria Bethânia, ora rascante como o raio, ora leve e fluido como as nascentes de um rio, guiou o canto mais amadurecido e hispânico de Omara. Ambos lindos. As apresentações foram, para além das aulas de história, íntegras dramaturgias explicando como seria melhor a América Latina nessas intersecções entre a afrolatinidade hispânica e a portuguesa, o negro Brasil em constância com as negritudes latinoamericanas civilizadoras de países como Cuba. As trocas afroindígenas e o melhor das latinidades espanholas e portuguesas sem as marcas opressoras da cruel colonização.

Esta experiência de mulheres, alicerçadas em seus músicos, esparramou na complexidade brasileira a potência da Maria Bethânia intelectual que se constrói artista à luz da inventividade de seu povo. Nos entregou, como desde 1965, quando ela estreou no lendário show Opinião, no Rio de Janeiro, a inteligência da cantora sublime e da intérprete fulgurante que move os ensinamentos mais profundos e os coloca em nossa audição. Antes de sabermos da matripotência e cosmopercepção como conceitos acadêmicos vistos na nigeriana Oyèrónk? Oy?wùmí, Maria Bethânia já as praticava por intuição transfeminina e pelas íntimas lições de Dona Canô, sua mãe biológica, Dona Edith do Prato, mentora artística e transcendental e Mãe Menininha, mãe espiritual e alicerce iorubano no pensamento existencial de Maria Bethânia.

Capa do CD lançado pela Biscoito Fino (Reprodução) 

A matripotência de duas cantoras em palcos brasileiros

A Biscoito Fino, gravadora carioca, e uma das realizadoras deste evento/show, trouxe Omara Portuondo e Maria Bethânia. Transformou o enorme encontro em DVD e CD, selando com a arte destas mulheres a indissolúvel associação entre Cuba e Bahia, Havana e Salvador. A orquestração teve a direção de Jaime Alem (Maria Bethânia) e Swani Jr (Omara Portuondo). Os temperos instrumentais contaram com Chefs como Marcelo Costa, Jorge Helder, Andrés Coayo, Claudinho Brito, João Carlos Coutinho. Na plateia, a festa emocionada do nosso povo. O privilégio de quem sentiu de perto. Todos e todas que ouviram "Cio da Terra" (Milton Nascimento e Chico Buarque), ou "Tal Vez" (Juan Formell)... Caymmi reinventado por Roque Ferreira. Dona Omara em "Lacho" (Facundo Riviera e Juan Pablo Miranda) e "Drume Negrita" (Ernesto Grenet). Maria Bethânia rasgando o céu da emoção em "O ciúme", de Caetano Veloso.


Ressoa hoje, em maio de 2021, o encantamento de duas mulheres fazedoras de feitiços. Duas mulheres espojadas na beleza de suas culturas. Duas mulheres enegrecendo os instantes de quem respira e aprende com a arte em movimento. Um encontro lição para tempos tão obtusos, mas também, lição para qualquer tempo onde haja sensibilidade.

 A palavra se mistura à música virando canção. O mar azul de Salvador feito um trecho de Nicolás Guillén, para que se possa relembrar aqui Omara Portuondo: “Não sei. Ignoro. / Desconheço o tempo que andei/ sem novamente encontrá-la. / Talvez um século?/ Acaso./  Talvez um pouco menos: noventa e nove anos?/ Ou um mês? Poderia ser. De qualquer forma,/ Um tempo enorme, enorme, enorme”. No céu de Havana, feito o raio de Santa Bárbara, Maria Bethânia canta Herivelto Martins e Chianca de Garcia: “ Para te buscar/ Nossos saveiros já partiram para o mar/ Nossas morenas roupas novas vão usar/ Se tu vieres irás provar o meu vatapá/ Se tu vieres viverás nos meus braços/ A festa de Iemanjá / Vem, vem, vem/  Vem em busca da Bahia/ Cidade da tentação/ Onde meu feitiço impera/ Vem/ Se me trazes o teu coração/ Vem/  Que a Bahia te espera”.

A partir da inseparabilidade: cantaram juntas, no Brasil, Omara Portuondo e Maria Bethânia. Encruzilhadas culturais que dão horizonte às nossas vidas.



Marlon Marcos é poeta, antropólogo, jornalista, historiador e professor da Universidade da Integração da Lusofonia Afrobrasileira – Unilab.


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