Música

Lupicínio Rodrigues, o bardo da dor de cotovelo

segunda, 16 de setembro de 2019

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Na letra da música Esses moços, eternizada na voz de Francisco Alves em 1948, o compositor gaúcho de Porto Alegre Lupicínio Rodrigues, do alto de seus maduros 34 anos, dá seu recado à geração mais nova:

Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, não passavam
Aquilo que já passei...

O recado, embora amargurado, não é mero drama: Lupicínio sabia do que estava falando. Boêmio inveterado, amante da noite, dos bares e das mulheres, foi um romântico sem cura. Amou demais, sofreu demais e, para nosso deleite, compôs demais também. Foram tantas as desilusões, tantas as canções, que ele ficou conhecido como o “criador da dor de cotovelo”, aquele tipo de música que se escuta com os cotovelos fincados no balcão de um bar, chorando e cantarolando com a voz embargada entre um gole e outro de cachaça. E assim, embora sempre doente de amor, acabou se tornando um dos mais importantes compositores da música popular brasileira. 

Lupicínio costumava dizer que não era compositor e nem cantor, e sim um boêmio profissional. De fato, sempre levou jeito para a boemia. Tanto que, quando completou 16 anos, seu pai o matriculou como voluntário do Exército. Queria ver se o filho tomava jeito e criava disciplina. Nem é preciso dizer que não adiantou. Com 21 anos, Lupicínio deu baixa na vida militar e ficou um tempo trabalhando como bedel na Faculdade de Direito. Logo depois, em 1935, participou de um concurso musical em comemoração ao centenário da Revolução Farroupilha. Com Alcides Gonçalves, compôs o samba Triste história, que saiu campeão. Foi o pontapé inicial para que ele assumisse de vez a boemia e a música como forma de vida. No fim da década de 1930, Cyro Monteiro fez sucesso com outro samba de sua autoria, Se acaso você chegasse, e em 1939 Lupicínio mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a frequentar os bares da Lapa e o Café Nice, reduto dos artistas e intelectuais da época. Lá fez seu nome e conheceu Francisco Alves, que acabou se tornando seu principal intérprete. De bar em bar, de gravação em gravação, Lupicínio caminhou lentamente para se tornar um dos compositores mais requisitados da década de 1950.  


Analisada hoje, sua obra provou-se atemporal. Afinal, sofrer por amor nunca fica fora de moda. Compositor confessadamente autobiográfico, Lupi (como também era conhecido) criou músicas que narram, sem pudor, os tristes desamores: abandono, traição, desilusões, separações doídas, amargura, raiva, remorso, enfim, todos esses sentimentos tão próprios da vida humana. E falava de tudo isso em letras quase discursivas, com uma coloquialidade moderna e surpreendente para o período. Não por acaso, encontrou no samba-canção, romântico e melancólico por natureza, o seu gênero de maestria. 

O maior sucesso de sua carreira, Vingança, gravado por Linda Batista em 1951, é o símbolo do sentimentalismo romântico que o consagrou e que se tornou retrato de uma época. A letra narra, em forma de diálogo, o prazer experimentado por alguém ao ficar sabendo que o ex amor anda bebendo pelos bares, deprimido e arrependido da traição cometida. Reza a lenda que, à época do lançamento, essa música virou trilha sonora para o suicídio de muita gente: 

Mas enquanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar...  


Em um de seus célebres textos sobre música popular, o poeta e crítico cultural Augusto de Campos lançou um olhar original sobre a obra de Lupi. Trata-se do artigo “Lupicínio esquecido?”, publicado em 1967. No texto, Augusto diz que as letras de Lupicínio podem até lidar com o banal, mas não são banais. Em suas palavras: “Na colcha-de-retalhos de frases-feitas irrompem quando menos se espera metáforas lancinantes e desmesuradas, mas tremendamente justas e eficazes.” 

Indo mais longe, ele compara o poeta Lupicínio Rodrigues a escritores como Nelson Rodrigues e até William Shakespeare! Segundo Augusto, se Shakespeare se utilizou de diversas metáforas e alegorias rebuscadas para formular uma ideia de ciúme na peça “Otelo”, Lupicínio conseguiu, sem pretensões literárias, formular em suas letras uma ideia de “cornitude”. De fato, essa ideia aparece na resignação de Quem há de dizer, na dor sofrida de Nervos de aço ou na compreensão redentora de Cadeira vazia. Pois é, mesmo sendo “só um boêmio”, compondo com a ajuda do assobio e de uma caixinha de fósforos, Lupicínio Rodrigues tornou-se o bardo da dor de cotovelo.

Para além dessas composições, espalhadas nas vozes dos mais renomados intérpretes da música popular, Lupicínio deixou também registros como cantor, sobretudo no LP Roteiro de um boêmio, lançado no início da década de 1950. Curioso é que diferente da interpretação melodramática que a maioria dos cantores da época davam às suas composições, Lupicínio cantava baixinho, num estilo suave e moderno, inspirado por Mário Reis, que antecipava, em certo sentido, o estilo cool da bossa nova. Mas se escutarmos bem essas gravações, é possível perceber que a dor profunda retratada nas letras e vividas na pele pelo poeta, aparecem também na voz do cantor, não por meio de arroubos operísticos, mas pelo timbre levemente embargado: ele cantava como se estivesse sufocando um choro, o qual só deixava escorrer de verdade na hora de compor. 


Nos anos 1960, quando o samba-canção e as dores de cotovelo foram eclipsados pelas paisagens solares da bossa nova e os carrões e garotas papo-firme da jovem guarda, Lupicínio, que era um dos compositores de maior prestígio nos anos 1950, viveu um breve período de ostracismo. Na virada para a década de 1970, no entanto, a partir da revalorização de sua obra promovida pelos tropicalistas, ele voltou à cena e passou a ganhar regravações (algumas definitivas) de novos nomes da música brasileira, como Caetano Veloso (Felicidade), Elis Regina (Cadeira vazia), Gal Costa (Volta), Paulinho da Viola (Nervos de aço), Zizi Possi (Nunca) e, claro, Jamelão, que se tornou um verdadeiro especialista da obra de Lupicínio, gravando diversos tributos ao compositor. Assim, ao morrer em agosto de 1974, Lupicínio Rodrigues estava novamente no auge da carreira, envolto por uma aura cult: era capa do jornal O Pasquim, gravado por gente importante, e realizava uma série de shows disputadíssimos pelo público. 


Passados 45 anos de sua morte (27 de agosto de 1974) e 105 de seu nascimento (16 de setembro de 1914), é possível constatar que a obra de Lupicínio Rodrigues segue relevante. Sim, sua música tornou-se o retrato de uma época e o símbolo dos anos 50 no Brasil, mas erra quem pensa, por isso, que se trata de uma música datada. Assim como uma peça de Shakespeare ainda soa atual nos dias de hoje, as músicas de Lupicínio continuam fazendo sentido, e é provável que permaneça assim por muito tempo. Não à toa, mesmo depois de sua morte, ele seguiu ganhando diversas outras regravações nas vozes de Maria Bethânia (que deu uma interpretação memorável a Loucura no disco Mel), Arnaldo Antunes (que gravou Judiaria em forma de rock), Adriana Calcanhotto (que lançou o álbum ao vivo Loucura, só com canções do seu conterrâneo) e muitos outros. Além disso, a “cornitude” formulada por Lupicínio (para citar a tese de Augusto de Campos) continuou reverberando e se multiplicando na produção musical brasileira. Bem ou mal, Lupicínio também é pai da dor de cotovelo de Reginaldo Rossi (Garçom) ou Waldick Soriano (Eu não sou cachorro, não), do romantismo melancólico de Roberto Carlos (quem há de negar que Detalhes tem os genes de Vingança?), da sofrência sertaneja de Marília Mendonça (Infiel) e até das tintas passionais da produção de Johnny Hooker (Volta, Alma sebosa). 

Com vida de boêmio e coração de poeta, atormentado pelos “milhões de diabinhos” que o faziam compor tão lindas canções, Lupicínio Rodrigues fez na Terra o que poucos homens têm coragem de fazer: sujeitou-se a ser sacrificado com sua dor para salvar o mundo e provar que ainda existe o verdadeiro amor.

Talvez o mundo ainda esteja precisando de Lupicínio Rodrigues


Texto por: Tito Guedes 


Referências:
  • LUPICÍNIO Rodrigues. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa6600/lupicinio-rodrigues>. Acesso em: 27 de Ago. 2019. Verbete da Enciclopédia.
  • CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. 

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