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Juçara Marçal e Kiko Dinucci no Circo Voador para nos manter de pé

Delta Estácio Blues e Rastilhos, uma noite, dois shows.

quarta, 02 de novembro de 2022

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Na última sexta-feira de outubro (28), diferentes tribos e grupos de pessoas se movimentavam para entrar no Circo Voador e assistir no palco dessa casa, um dos maiores espaços de música e cultura do país, Juçara Marçal e Kiko Dinucci apresentarem dois shows inesquecivelmente pulsantes. 


Para começo de conversa, Kiko Dinucci entra no palco, arrepia e presenteia a plateia com a experiência única de assistir ao vivo Rastilho (2020), seu segundo trabalho solo. Na apresentação de voz e violão do músico, um quarteto de vozes guiavam a caminhada pelo álbum: Dulce Monteiro, Graça Reis, Mara Isaías e Juçara Marçal. Vestidas de vermelho, as vozes das cantoras formam uma unidade fundamental nos arranjos, contracenando com as levadas abusivamente percussivas e riffs executados de forma precisa e absolutamente natural na performance de Kiko, que também explora a voz, ora conduzindo, ora como componente do côro. Sentado à esquerda delas, com diversos microfones a sua volta, o músico percorre as canções. As vozes, as levadas, os tempos, estratégias, entradas e saídas, interagem e dão forma às músicas tocadas. 

Dinucci também performa sozinho 3 obras onde expõem o caráter sonoro da execução ao violão, com apoio da escola do violão brasileiro popular, reavendo sonoridades de diferentes referências. Ouvimos não o som do violão, mas o som que Kiko produz, as ações que executa com o instrumento em mãos. A escuta guia por descaminhos, outros sentidos que vêm e vão incessantemente. 

A faixa-título do disco, com a participação do quarteto que retorna ao palco, ecoa essas quebras de percurso, tangenciada também pelo tema da morte: "Queima / Deixa arder / Virar Cinza/ Fumaça / A praça derreteu / A noite não findou / O temporal mal começou / Deixa o sol nascer / Quando ele quiser". Ao final das estrofes, elas puxam em coro "Vamos explodir".  A sonoridade, em todo conteúdo do disco, parece convocar novas formas de desorganização que interpelam a quebra do automatismo para redescobrir a escuta.

Kiko saí do palco deixando o público em êxtase por mais.  No intervalo entre os dois shows, na ânsia e desejo pelo retorno dos músicos, DJ RaMeMes discoteca sets acelerados de funk.

Em formação e montagem de palco mais instrumentada, Alana Anaias, bateria e samples, Marcelo Cabral, baixo e synths, e Kiko, guitarra e samples, acompanham a voz inconfundível de Juçara Marçal, adereçada de uma mesa de efeitos proporcionando timbres contemporâneos que dialogam diretamente com a estética do show e da sonoridade de Delta Estácio Blues (Melhor Álbum do ano/ Prêmio Multishow de Música Brasileira 2021 e Disco do Ano / APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte). Se, para Juçara, "das tempestades / a força que adquiri / não tem cais / onde hei de parar", diante de um mundo hiperconectado digitalmente, sobre "a intolerância, a loucura de todos nós", a cantora lembra e avisa: "Emojis não vão qualificar". A mistura de ritmos africanos com funk, rap e eletrônico é a marca do premiado e genial álbum produzido por Kiko, que em parceria com Juçara vem a muito tempo criando e colocando no mundo trabalhos ímpares, deslocadores e desconcertantes de ouvir, que nos levam a desejar e acreditar em outros futuros. 

A participação de Thiago França, incrivelmente habilidoso no saxofone, chega às composições como pulmão dos arranjos. A respiração é parte da dança, do movimento do corpo, não só parte, ela sustenta a experiência arrebatadora que é ouvir Delta Estácio Blues e ser convocado ao movimento dos ritmos e da ancestralidade que o disco reúne. Cabe destacar a participação dançante de Negro Leo, que dá ao público inspiração pra mexer o corpo, pra sentir o coração bater forte. 

Fechando a noite de explosão musical dessa "dobradinha" Rastilho e Delta Estácio Blues ao vivo, os músicos lançam ao público a anunciação que é Obá Iná, alarmante e urgente canção do disco de estréia do grupo Metá Metá (2011), formado por Juçara, Kiko e Thiago. No último final de semana de outubro, um dos meses mais importantes e tensos para o povo brasileiro, no palco do Circo Voador, Juçara e a banda cantam, chamam e provocam: "Não há justiça se há sofrer / Não há justiça se há temor / E se a gente sempre se curvar?"

Na encruzilhada desses encontros sonoros, Kiko Dinucci e Juçara Marçal, dois nomes revolucionários da música brasileira, derramaram música, fé, esperança, liberdade, dança, energia, cultura para alimentar a alma, dar fôlego e nos manter de pé!


por Júlia da Matta / Imagem: Rafael Catarcione


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