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Inéditas de Taiguara reconectam a história da MPB

quinta, 31 de outubro de 2019

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Compositor mais censurado na época da ditadura militar, o uruguaio criado entre o Rio e São Paulo, Taiguara Chalar da Silva (1945-1996), revezou-se entre o lirismo e a canção combatente em sua carreira de êxitos populares como “Hoje”, “Universo no teu corpo”, “Viagem”, “Que as crianças cantem livres” e “Teu sonho não acabou”. Sua obra de intensa circulação e influencia, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, tem sido resgatada pelo selo/ editora paulistana Kuarup, que, em 2013, reeditou o precioso “Imira, Tayra, Ipy”, LP retirado das lojas 72 horas após lançado, em 1976. Publicou também a biografia “Os outubros de Taiguara – Um artista contra a ditadura: Música, censura e exílio”, de Janes Rocha, e no mesmo ano, editou o álbum póstumo “Ele vive”, a partir do registro de voz e piano do artista, e faixas bônus ao vivo, de um espetáculo no Teatro João Caetano, da década de 1970. Também pela Kuarup saiu “O troco” (2017), releitura de composições de Taiguara pelo trio de gaúchos radicados em Curitiba, D Favetti (os irmãos Titã, Titi e Guego Favetti). Trazia canções pouco conhecidas do autor, como a do título e mais “Rua Dos Ingleses”, “Mudou”, “Menino da Silva” e “Moina me sorriu”.

Em novo projeto com a obra de Taiguara, agora associada ao compositor Zeca Baleiro e seu selo Saravá Discos, a Kuarup lança nas plataformas digitais o EP “Como Lima Barreto”. Os áudios foram recuperados de fitas cassete do jornalista e pesquisador musical Marcello Pereira Borghi, que também assina a produção. Na direção artística do projeto, Zeca Baleiro comandou a adição de novos instrumentos aos originais. O EP traz quatro gravações inéditas, entre elas o surpreendente samba enredo da faixa título, que aborda a escravidão, escudado no violão sete cordas de Swamy Jr, percussão de Julio Barro e coro, do qual participa o próprio Baleiro. Há ainda duas belas canções da vertente romântica de Taiguara. Mais intimista, “Paulistana” ganhou piano, acordeon e baixo de Adriano Magoo. Ainda não registrada pelo compositor em disco, “Ave menina” trafega entre a carícia e a suntuosidade, alicerçada pelo baixo acústico de Fernando Nunes e o violão de Rogério Delayon. O cortejo abre com “Caminhando” ou “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, a “Marselhesa brasileira”, como apelidou o filósofo do humor nacional, Millôr Fernandes.

Numa introdução didática, Taiguara explica à platéia (o registro é ao vivo) que a bossa nova tinha recém saído dos apartamentos da zona sul e dialogava com o samba de morro através dos teatros Arena e Opinião, e com “o sertão e as igrejas” trazidos pela abordagem moderna de Edu Lobo, quando o AI-5, (legislação da ditadura) fechou o país e “interrompeu esse processo”. Mas ele assevera que um compositor chegou à síntese pretendida pelo movimento ao acessar a “guaraniedade” (do gênero guarânia) do Brasil “para nos acordar num canto irmão e coletivo, caminhando e cantando e seguindo a canção”. Observa que Vandré não gosta que sua música seja cantada, o que ele não concorda, mas respeita, porque “nenhum de nós sofreu como ele”. Entoa a canção estimulando o coro da platéia e enfia alguns “não” afirmativos entre as estrofes, comentando a letra que fala nas pessoas que “acreditam nas flores vencendo os canhões”. É uma confluência musical comovente, até agora praticamente desconhecida, que reconecta a MPB com o lado épico e guerreiro de sua história recente. Taiguara completa a travessia acrescentando seu chamamé (gênero do centro sul do continente, aparentado à guarânia) “Voz do Leste”. A letra solerte remete a uma época em que o autor morou nesta região da capital paulista (“sou voz operária do Tatuapé/ canto enquanto enfrento o batente com a mão”) e vergasta os mesmos verdugos de “Caminhando” (e de sempre): “tem quem sustenta a trapaça/ e depois que fracassa, amordaça o país”.


Por: Tárik de Souza
Foto de: Antonio Guerreiro 

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