Tema do Mês

Gonzaguinha, o cavaleiro solitário

terça, 22 de setembro de 2020

Compartilhar:

Com a perna no mundo

Era um moleque do morro de São Carlos, do Estácio, no Rio de Janeiro. Ainda pivete, sentava lá no alto e observava a cidade, sentindo o cheiro de asfalto. Acreditava na vida, na alegria de ser e nas coisas do coração. 

O tal moleque era Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior - depois Gonzaguinha. Filho de rei - o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. E de Odaléia Guedes dos Santos, cantora de dancings, crooner de orquestra e compositora. Morreu de tuberculose quando o filho tinha dois anos. O pai, cuja vida era andar por esse país, não pôde abrigar o menino, que foi morar com os padrinhos Henrique Xavier e Dina. 

Um dia, por necessidade, o guri desceu o São Carlos. Com fogo nos olhos, força de guerreiro e um sonho nas costas, atravessou a vida como um cavaleiro solitário, guiado pela estrela de poeta, e partiu. 

Foto: Reprodução

Pelo caminho, foi encontrando parceiros, se encontrando. Na casa do psiquiatra Aluísio Porto Carreira, conheceu amigos como Ivan Lins, César Costa FIlho e Aldir Blanc. Todos músicos, poetas, com vontade de transformar o mundo. 

A ironia e a visão crítica escoam nas primeiras composições de Gonzaga Jr., que ganham palco e forma nos Festivais Universitários de Música da TV Tupi. Em 1969, foi vencedor de um deles com “Trem”. Poesia, estranheza e melancolia. Havia quem dissesse que o mercado nunca aceitaria aqueles artistas com fama de MAU - do Movimento Artístico Universitário, formado por ele e amigos como Ivan Lins e Aldir Blanc.  

Você merece?

Em 1973, contudo, quem tentou lhe fechar as portas não foi o mercado, mas a censura. Vivia-se desde 1964 o regime militar no Brasil e Gonzaga Jr. apresentou no programa “Um Instante Maestro”, de Flávio Cavalcanti, a música “Comportamento geral”, crítica à exploração, aos complacentes e conformados. E agora, Zé? Vão acabar com o teu Carnaval. 


A reação foi imediata. Um dos jurados do programa ergueu a voz e chamou o compositor de terrorista. Outro sugeriu sua deportação. O DOPS o convidou a prestar esclarecimentos. A música foi proibida de ser veiculada e executada em rádios, mas a procura pelo compacto com a canção aumentou vertiginosamente e o garoto de São Carlos, já um homem adulto, franzino e - para muitos - arredio, virou definitivamente um cantor e compositor brasileiro. 

A censura continuou rondando suas criações, mas ele conseguiu lançar seus primeiros discos: “Luiz Gonzaga Jr.” (1973), “Luiz Gonzaga Jr.” (1974), “Plano de vôo” (1975) e “Começaria tudo outra vez” (1976). O tom sério, crítico e melancólico de grande parte das canções lhe rendeu a injusta pecha de “cantor rancor”. 

Sim, injusta, pois ele logo provaria que era um engano confundir postura crítica e consciência social com rancor. E que ele próprio possuía um outro lado, mais solar, alegre e festivo. 

A tal da felicidade 

Muita gente se surpreendeu quando as esfuziantes Frenéticas, grupo pioneiro da dance music tupiniquim, estrearam no mercado fonográfico com uma canção de Gonzaga Jr. “A felicidade bate à sua porta”, que na voz daquelas seis tigresas de unhas negras do Dancin` Days era uma marchinha dançante com uma letra deliciosamente irônica, é uma canção do disco de estreia do tal “cantor rancor”. 

A partir daí, vieram novas parcerias irreverentes entre o compositor e as vocalistas perigosas: “O preto que satisfaz”, que em 1978 virou tema da novela “Feijão Maravilha”, e “Marcha do povo doido” em 1979, outra crítica dançante ao regime militar e à forma como foi conduzida a anistia política. 


Coincidência ou não, foi nessa época que Gonzaga Jr. virou Gonzaguinha. Assim seu nome apareceu grafado pela primeira vez na capa do disco “Moleque Gonzaguinha”, um ponto de virada em sua carreira. Seu repertório se tornou mais alegre e romântico, tendendo ao samba e ao bolero. Não à toa, a partir daí suas composições passaram a frequentar as vozes de cantoras como Simone, Nana Caymmi, Elis Regina e Maria Bethânia. Esta última, entre 1978 e 1979, lançou pelo menos três clássicos do romântico Gonzaguinha: “Não dá mais pra segurar (explode coração)”, “Grito de alerta” e “Infinito desejo”. 

Com isso, aquele que começou a década de 1970 como um “cantor rancor”, iniciou a de 1980 como um artista requisitado, com diversas canções de amor tocando nas rádios e ecoando nas mentes e corações dos mais distintos públicos. Não era, ao contrário do que muitos pensaram na época, um abrandamento de sua postura combativa ou a entrada no jogo do mercado. Era apenas Gonzaguinha revelando ao público um lado que sempre fora seu, e que lhe ficou de herança dos boleros e sambas canções adorados e cantados por sua mãe, Odaléia. 


Com a abertura política no Brasil, a obra de Gonzaguinha ganhou outra lufada de esperança e crença no futuro, com canções que celebravam a vida, a união do povo e a resistência, como em “E vamos à luta” (1980), “O que é, o que é?” (1982), “O homem falou” (1985) e “É” (1988). Mesmo assim, ele nunca perdeu o olhar crítico e sobretudo irônico diante dos fatos.

De pai pra filho

Talvez outro fator também tenha contribuído para essa postura celebrativa diante da vida. O encontro de Gonzaguinha e Gonzagão no palco, em 1981. O show “A vida do viajante”, que rodou o país e originou um álbum gravado ao vivo, foi uma espécie de cura para os dois, que sempre tiveram uma relação difícil. Luiz Gonzaga finalmente reconhecia o filho como um grande compositor popular e Gonzaguinha deixava de lado as desavenças políticas com o pai para celebrar pela primeira vez o elo que os une até hoje: a música. 

Pai e filho, inclusive, partiram quase juntos. Luiz Gonzaga morreu em agosto de 1989, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Gonzaguinha, um ano e meio depois, em 29 de abril de 1991, vítima de um acidente de carro. 

Foto: Reprodução

Cavaleiro solitário 

No dia 22 de setembro de 2020, Gonzaguinha chegaria aos 75 anos de vida. O clichê de que sua obra sobreviveu a ele é o único cabível para descrever seu legado. “Comportamento geral”, por exemplo, a música que a censura tentou calar em 1973, renasceu de 2019 pra cá em vozes inconformadas com o cenário político atual, num triste retrato do ciclo da vida brasileira. Elza Soares a gravou no disco “Planeta fome”, Vanessa da Mata a interpretou no show “Quando deixamos nossos beijos na esquina”, Ney Matogrosso a cantou na trilha da novela “Éramos Seis”, Xênia França a registrou no aclamado projeto “Acorda amor”, e por aí vai...

Ou seja: Gonzaguinha não está mais aqui, mas nem a censura, nem o tempo são capazes de apagar o fogo que ele trazia nos olhos e na poesia. Um fogo de não se apagar, como ele mesmo disse. 

O moleque de São Carlos botou a perna no mundo e sumiu. Sumiu, mas também nunca partiu de fato. Cavaleiro solitário, atravessou a vida com fúria, serenidade e esperança:

Eu nunca voltarei
Do mesmo modo
Como um dia eu saí
A vida não tem ‘replay’
Há muito eu sei
Fui tudo maravilhoso
Até a hora em que eu partir
Há muito tempo
Cavaleiro Solitário…

Texto por: Tito Guedes

Comentários

Divulgue seu lançamento