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Gal Costa se renova nos duetos de 'Nenhuma dor'

segunda, 08 de março de 2021

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Em plena idade das trevas, pandemia desenfreada e sofrimento coletivo, Gal Costa desembarca o álbum bálsamo ”Nenhuma dor” (Biscoito Fino), concepção e direção geral de Marcus Preto. Na comemoração de 75 anos, com sua voz mais cristalina que nunca, oferece alento aos desvalidos (quase todos nós) regravando clássicos e pérolas obscuras de sua extensa trajetória no disco, também lançado em vinil pela Noize Record Club. Em boa parte das fotos da luminosa capa, assinada pelo artista plástico Omar (filho do poeta tropicalista Waly) Salomão, ela ressurge jovem e revigorada. O mesmo ocorre nas dez faixas sintéticas do curto CD. Ele compila os singles, que a cantora lançou aos pares nas plataformas digitais, desde novembro de 2020, gravados em duetos com cantores de gerações posteriores, entre notórios e menos conhecidos. Coincidência ou não, quase todas as gravações exploram regiões agudas do timbre elástico da cantora. Tanto que há momentos em que as vozes da anfitriã e convidados quase se fundem, em comunhão.

Capa do álbum "Nenhuma Dor" (Foto: Reprodução) 

Um dos fundadores do grupo Los Hermanos, Rodrigo Amarante está entre essas vozes. Ele singra com Gal, “Avarandado”, uma das canções inaugurais de Caetano Veloso (que ele gravou com a cantora no disco de estreia de ambos, “Domingo”, em 1967), em leve embalo afoxé bossa. Empolgado por conta do encontro com a ídola, Amarante enviou-lhe uma carta onde exalta sua voz, “o som de um sorriso, esse mistério sem segredos que é seu jeito de cantar, onda suave que passa leve, mas que traz à tona tesouros de nossas profundezas”. Também do mesmo repertório inicial da solista é “Coração vagabundo”, uma das composições de Caetano mais próximas da sintaxe joãogilbertiana, que ambos praticavam na época. No CD, Gal a divide com o astro indie  nascido em Volta Redonda, RJ, Rubel, também de timbre agudo e cálido, ao violão, ambos envoltos pelos cellos de Marcus Ribeiro, violinos, violas e arranjos de Felipe Pacheco Ventura. Com outro alternativo de voz doce, inicialmente ligado à música eletrônica, o capixaba Silva, Gal flutua ao sabor do samba canção modernista de Dorival Caymmi Só louco”. O megaclássico tropicalista “Baby”, de Caetano, ressurge em nova configuração, entretecida pelo violão e voz sutis de Tim Bernardes, revelado no grupo paulista O Terno.

Egresso da cena do rap paulistano que despontou para a MPB, Criolo contracena com Gal no hino identitário de Caetano Veloso e Milton Nascimento, “Paula e Bebeto” (“qualquer maneira de amor vale a pena/ qualquer maneira de amor valerá”). Repleta de acidentes rítmicos, balizados por Pedro Coelho (baixo) e Gabriel Vaz (bateria e percussão), a canção testa o contraste de texturas entre os dois vocalistas. Ele se acentua ainda mais no épico urbano de Luiz Melodia, “Juventude transviada” (que popularizou a expressão “auxilio luxuoso”) aberto em câmera lenta pelo vozeirão de Seu Jorge, e depois mediado pela leveza serena de Gal.

Gal Costa com Tim Bernardes e Rubel (Foto: Carol Siqueira) 

Há duas participações internacionais (embora bem aclimatadas ao país) no disco. O cantor português Antonio Zambujo, que divide os contorcionismos melódicos de Tom Jobim e a letra reticente de Chico Buarque na econômica “Pois é”. E o uruguaio Jorge Drexler, cujo violão e voz adicionam tonalidades vibrantes ao corrosivo folk de Bob Dylan “It’s all over now baby Blue”, na tradução de Caetano, “Negro amor”: “Esqueça os mortos que eles já não levantam mais/ o vagabundo esmola pela rua/ vestindo a mesma roupa que foi sua”. Outros dois picos agudos ainda cintilam no disco. Carioca, filho de mãe chilena e pai baiano, Zé Ibarra, revelado no grupo Dônica, integrado por Tom (filho de Caetano) Veloso, terça ao piano, com Gal, os arrebatamentos de “Meu bem, meu mal”. Entrega a letra de Caetano: “Meu bálsamo benigno/ meu signo, meu guru/ porto seguro onde eu vou ter”. A outro filho de Caetano, Zeca Veloso, cabe a faixa saideira do título, “Nenhuma dor”, parceria do tropicalista baiano com o piauiense Torquato Neto, também lançada no disco “Domingo”, de 1967. Zeca cerze ao violão e adiciona coro aos cumes vocais da canção, que desidrata o hino pátrio em lirismo ácido: “Minha doce e triste namorada/ minha amada idolatrada/ salve, salve o nosso amor”.

Tárik de Souza

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