Na Ponta do Disco

'Estou 80 anos adiantado': A importância do 'Tremendão' para a MPB da década de 1970

por Tiago Bosi

terça, 29 de junho de 2021

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Nesse mês em que Erasmo Carlos completou 80 anos, acompanhei parte das diversas homenagens feitas a ele, além de pensar sobre a memória coletiva que se criou ao seu redor. Mesmo com uma carreira extremamente extensa e riquíssima, Erasmo continua humilde e comedido em suas palavras e ações: comemorou a data apenas com familiares por vídeo-chamada e sem grandes alardes.

Me peguei então pensando em algumas de suas canções do fim da década de 1960, em especial uma de suas canções mais emblemáticas do período já de declínio da Jovem Guarda, a música “Estou dez anos atrasado”. A faixa abre o LP de Erasmo Carlos “Erasmo Carlos e os Tremendões” (RGE, 1970) e já faz alguns anos que gosto de ouvir esse álbum, e essa faixa, em específico. Diz já o inicio da letra:

Eu sei que é pedir demais, meu Deus/
Ilumine minha mente, eu quero/
Eu quero começar de novo/
Não quero acompanhar meu povo, não quero/

Me parece claro que essa canção e todo o LP na verdade representa uma dos grande evidencias de que o projeto autoral do “Tremendão” e toda a Jovem Guarda estava no divã. Não bastasse essa canção emblemática, o álbum de 1970 de Erasmo traz um curioso misto de ufanismo (“Aquarela do Brasil”Ary Barroso), “Saudosismo” (Caetano Veloso), rock ("Jeep") e sambalanço ("Coqueiro Alto") – eclético, heterogêneo e visivelmente tateando (no escuro) um possível novo projeto autoral em meio a gêneros pouco comuns dentro do repertório tradicional de Erasmo. O álbum diz muito sobre seu contexto sociocultural, ou seja, o fato da música brasileira, naquele período estar atravessando o maior paradoxo de sua história: estouro absoluto de vendas paralelo a uma crise geral criativa e de projetos autorais. A verdade é que poucos artistas, naquela virada de década, sabiam, de fato, qual rumo seguir.  E Erasmo definitivamente não foi exceção.  

O cenário era no mínimo anárquico em muitos sentidos: A dita “MPB” estava em crise por meio da chegada acachapante do Tropicalismo em 1967-68 e os puristas (Ou os “dragões da independência do samba” como diria Torquato Neto) estavam tendo que engolir o iê-iê-iê tropical de Caetano, Gil e Os Mutantes. O samba se voltou de novo para suas próprias “origens” e a criação da Bienal do Samba era claro sinal do desgaste do casamento dos sambistas e da intelectualidade do gênero com a tal Moderna Música Popular Brasileira da época de ouro da Era dos Festivais. O próprio processo de esvaziamento dos Festivais no fim da década de 1960 também já era sinal de que algo estava mudando rapidamente. E a Jovem Guarda de Erasmo, Roberto e Wanderléa? O turbilhão da época também não poupou o tão celebrado movimento e todo aquele espírito jovial e rebelde do grupo parecia estar perdendo o brilho (ou a brilhantina) rapidamente.

Era evidente para muitos que Roberto Carlos havia se tornado maior que o movimento todo e que havia conseguido seguir seu caminho com relativa tranquilidade frente ao prestigio que já havia angariado como um cantor romântico – no limite do brega/cafona. De toda forma, era indiscutível que Roberto tinha carisma, talento, vendagens e popularidade fora de série.  Mas os motivos para o fim da Jovem Guarda não se resumiam a personalismos e projetos autorais. Depois do Summer of Love de 1968 na Califórnia o rock não era mais o mesmo. A contracultura tinha chegado para ficar e a psicodelia lisérgica que se traduzia em solos de guitarra de Jimi Hendrix e nas experiências instrumentais do The Doors e King Crimson pouco ou nada davam sentido àquele rock do pós-guerra de Erasmo e Roberto em que as rebeldias comportamentais se resumiam a andar o mais rápido possível com seus veículos possantes. Era preciso se reinventar urgentemente.

Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos na época da Jovem Guarda (Foto: Divulgação)

André Midani, o diretor brasileiro da Philips/Phonogram (também Polygram) naquele período sabia de tudo isso há muito tempo. Tinha chego ao Brasil vindo do México, local em que enfrentou extrema dificuldade para emplacar uma banda de rock em 1966, Los Yaquis – duramente perseguidos (e até presos) pelos anti-imperialistas mexicanos mais radicais.

Midani já percebera em Caetano Veloso, de cara, sua estrela e seu talento em amalgamar estilos e aderir àquilo que ficou conhecido na época como “cultura pop”. Caetano encantou Midani não só por seu repertório musical, mas também cultural e sua capacidade intuitiva de artista de conceber seu projeto autoral a partir do que acontecia no mundo e no Brasil. Midani também chamou de pronto Gil e Chico para a Philips, mas havia outro artista que ele nunca deixou de observar de perto: Erasmo Carlos

Erasmo já antecipava o sábio que hoje é”, escreve Midani sobre o Tremendão em seu livro de memórias. E se não bastasse a boa impressão que Erasmo causou ao presidente da Philips na época, Midani e Manoel Barembein se encontrariam com Erasmo diversas vezes em jantares para que o testa de ferro da Philips chegasse a uma certa conclusão e finalmente confessasse ao músico: “Erasmo, você é bem mais interessante que Roberto”. Não à toa, algum tempo depois, Midani chamou Erasmo no caso de Wilson Simonal – acusado de colaboracionismo com o regime – para ser um interlocutor junto a outros artistas que poderiam ficar com um “pé atrás” frente à contratação de Simonal pela Philips/ Phonogram. André Midani nunca escondeu ao longo de seu livro de memórias ("Música, Ídolos e Poder", 2008), a admiração e o respeito que nutria por Erasmo, para ele, quase um “irmão caçula”. 

Nessa virada da década de 1960 para 1970, muita coisa vinha se alterando na música popular brasileira, e as gravadoras tinham o dedo (e a mão inteira) nesse processo de mudanças que ocorriam à toque de caixa. Essa presença de Erasmo Carlos nos bastidores da maior gravadora do país traduz muito como o artista conseguiu compreender de forma acurada o momento todo da música gravada no país sem que necessariamente ele conseguisse de imediato traduzir tais percepções em suas canções e em seu projeto autoral. 

Um dos aspectos mais interessantes desse processo foi a concepção do antológico Festival Phono 73. Em conversas com Midani e outros artistas, Erasmo reiterava que a concepção de Festivais competitivos estaria ultrapassada. Segundo Midani, “um pequeno grupo de nossos contratados vinha tendo muitas conversas lideradas pelo Erasmo, elucubrando sobre a possibilidade de se lançar, com êxito, um festival não-competitivo”. O ano era 1972 e Erasmo já havia se incorporado ao casting da Philips, muito provavelmente não graças as suas vendagens na época, mas sim a sua capacidade de se adaptar musicalmente, sua facilidade de fluir entre vários grupos e, claro, sua franca amizade e relação de admiração e respeito mútuo por Midani. 


O que surpreende nessas revelações e na própria forma como Erasmo atuava é sua percepção frente a um momento de “pacto geral” da MPB, naquele período, incorporando artistas tidos como cafonas, como Odair José, mas também novos expoentes do rock como Raul Seixas e Sérgio Sampaio. O próprio encarte do álbum do Festival é bastante categórico – quase um manifesto: “estamos abertos à música que se faz no Brasil  (...) venha de onde vier, seja feita por quem for, de que forma for. Canto aberto.”. Aquele espírito de animosidade e competição dos festivais da década anterior parecia não ter espaço nesse novo momento da MPB e a forma como Erasmo teria antevisto tais questões já em 1972 é bastante reveladora. A participação de Erasmo no festival, com a quinta canção do Lado B do Disco 1, cantando a balada “Me acende com teu fogo”, foi discreta e emotiva se comparada a participação dos rockeiros Sérgio Sampaio e Raul Seixas que “quebraram tudo” no palco, atitudes essas que o próprio Midani dizia ser incapaz de lidar: “esses dois eu deixo com o Roberto (Menescal)”.

Erasmo em seus LPs e apresentações reitera um projeto autoral que não mais se alicerça nas jaquetas de couro a atitudes intempestivas e rebeldes daquela persona do “Tremendão”, mas sim revela um novo Erasmo: romântico, maduro e agregador (em especial naquilo que mostra em seu álbum de estreia pela Philips de 1971).  Tais elementos já aparecem em sua obra entre 1970 e 1973, mas o curioso é como se tornam não apenas elemento do seu projeto autoral, como também de suas próprias atitudes e ações como um “empresário de si”. O tom pacificador e agregador do “Tremendão” mostra no fundo uma percepção acurada do artista frente ao momento que a música comercial atravessava no Brasil em meio aos anos mais repressivos do Regime Militar. E tal perspectiva naquele momento seria traduzida em um grande festival agregador e “pacificador”. O Festival foi entendido por alguns setores como um espetáculo alienante naquele cenário de luta armada e radicalização, mas também foi interpretado em um segundo momento como um possível alicerce de uma grande frente ampla contra a ditadura por meio da cultura – como também seria o show “Banquete dos Mendigos” do mesmo ano.  Mesmo Midani admitiu a grande importância cultural que o Festival acabou exercendo no campo politico e cultural (em especial por conta da canção “Cálice” de Gil e Chico), mas por mais antológico que tenha se tornado o evento também foi, segundo o diretor musical, uma enorme “aventura empresarial”. E nesse sentido vale destacar novamente a importância de Erasmo em liderar um grupo de artistas bastante heterogêneo e nem sempre fácil de lidar – que era o surreal casting da Philips/Phonogram, de Odair José a Hermeto Pascoal – e também saber negociar com empresários, diretores musicais e patrocinadores uma empreitada pra lá de titânica. 

E talvez lá atrás naquele álbum de 1970 ainda pela RGE a Jovem Guarda e Erasmo realmente estivessem confusos num divã, mas o “tratamento” parece ter surtido efeito rapidamente e Erasmo Carlos se mostrou em muitos sentidos, naquele contexto, “10 anos adiantado”. Se 1973 é visto hoje como um ano que reinventou a MPB é importante dar créditos à Erasmo por ter já em 1972 começado a articular aquilo que viria a ser o Phono 73. 

A dimensão da atuação de Erasmo Carlos nesse inicio de década de 1970 – momento tão complexo da canção e do cenário político e social em nosso país – ainda mereceria muito mais volume de pesquisa, compreensão e destaque por parte de historiadores, jornalistas e pesquisadores da música brasileira, mas é certo que nesses 80 anos de vida Erasmo continua sendo um dos artistas mais criativos, instigantes, multifacetados e potentes de nosso país: um tremendo artista, diga-se. 



Tiago Bosi Concagh é historiador, professor e produtor cultural. Mestre em História Social pela USP e bacharel em produção cultural pela FAAP.  Idealizador do canal Na Ponta do Disco e do III Encontro de Música Brasileira: Sons da Diáspora, além de editor da Revista Lamella.


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