Conversa de MPB

Entre pulos e joões

João do Pulo (João Bosco e Aldir Blanc)

quinta, 19 de novembro de 2020

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No ano de 1981, Djavan, no seu quarto álbum de estúdio “Seduzir”, nos demonstrava como um nome, neste caso Pedro, perpassava vários contextos da história do Brasil e nos atentava: “Atenção, quem descobriu o Brasil foi Pedro. Quem libertou o Brasil foi Pedro. Quem construiu o Brasil foi Pedro”, além da referência a São Pedro e o seu poder, que vem lá de cima, de fazer chover e estiar.

Mas nossa conversa aqui é sobre um outro nome, que foi utilizado magistralmente por João e Aldir para falar de Brasil, na música “João do Pulo” do álbum "Cabeça de Nego" de 1986. Uma música que é um convite não apenas para ouvir, mas escutar com a profundidade do que esta música é, um verdadeiro “pulo do gato” dos autores.

João por toda a música, como o próprio Bosco o é, acaba sendo apenas um dos Joões de tantos que há e que, na verdade, contam e fazem a história do Brasil, um “João qualquer” que, como veremos, de “qualquer” não tem muita coisa.

O que para mim é incrível, é o fato de terem conseguido expressar em uma música uma espécie de FIO CONDUTOR (de Joões) que perpassa a história do povo negro no Brasil, desde sua origem ainda na África e vários momentos decisivos e contundentes de personagens marcantes da história ou de “um João qualquer” dos dias de hoje. E é este FIO CONDUTOR que liga os vários e vários Joões no decorrer de nossa história e do nosso presente. 

Os autores têm como mote (e homenageado) o atleta brasileiro do salto em distância João do Pulo (João Carlos de Oliveira 1954-1999) medalhista olímpico por duas vezes, cinco medalhas em Jogos Pan-Americanos e de recordes mundiais e que teve sua perna amputada, após grave acidente automobilístico no ano de 1981. A partir deste mote, as referências ao nome João vão desde o João Príncipe, não D. João VI – Príncipe Regente, mas o negro que de príncipe em reinados africanos, pela escravidão tornou-se, assim como seus descendentes, “um qualquer” aqui, teve que lutar e resistir (“De príncipe, a escravo, a preto forro”). O negro escravizado e o “preto forro” (o negro alforriado) é um possível João, que na frase que dá início à música, faz referência direta à Revolta dos Malês (“Combate Malê"), que aconteceu no dia 25 de janeiro de 1835 e mobilizou cerca de 600 negros escravizados em grande parte de influência muçulmana e que buscavam, além do fim da escravidão, a liberdade religiosa e de culto. 

A partir da assinatura da “Lei Áurea”, apesar de oficialmente a escravidão ter sido abolida e a chibata ter sido posta ao chão, a influência negra e africana permanece além mar e fundamenta a nossa história e nossa identidade (“Joga a chibata, João, no mar que te ampliou”), aqui, a referência direta é a João Cândido, o “Navegante Negro” líder da  Revolta da Chibata e protagonista da resistência negra à exploração e violência que sofriam, personagem tão bem retratado em “O mestre sala dos mares”, grande sucesso da dupla João e Aldir.

Tanto nas referência à Revolta dos Malês, aos Pulos do Saci, ao João Operário e Herói do Morro dos dias de hoje, a saudação à Xangô (“Ô, Kawô Xangô”) orixá dos raios, trovões, do fogo e da justiça, se faz presente como elemento de força e luta ao lançar seus “raios de luz”, ao ter sido “cortada a claridade do raio de Xangô” quando da perna cortada de João do Pulo ou ao “tri-trovejar de dor” em um Tri Campeonato Mundial de Futebol (1970) onde o país todo pulou de alegria em um momento triste da nossa história marcada pela entrada em vigor do Ato Institucional n° 5, dois anos antes.

E continuamos assim, dentre tantos e tantos Joões, num Brasil onde para sobreviver pula-se como um gato – como o próprio João do Pulo – por cima de tudo e de todos, da desigualdade social e os resquícios da escravidão, do preconceito e da discriminação racial que se apresentava e se apresenta tão fortemente ainda hoje. E neste quadro é que o FIO CONDUTOR de encerra mostrando-nos que é essencial que sejam valorizados, no decorrer de nossa história tanto sangue derramado neste contexto de exclusão no qual a “tribo passa fome de cachorro”, e que na resistência do operário ou do herói do morro (João do Pulo e tantos outros) deve-se valorizar, com as bênçãos e proteção de Xangô, todo o sangue que um dia já foi derramado (“Valoriza Herói, todo sangue derramado, afro-tupi").

Esta música representa, como disse, um verdadeiro “pulo do gato” dos autores, um verdadeiro convite para ouvir, mas ouvir com o coração, a atenção e a profundidade que esta e várias músicas nos pedem, com a necessidade de pensarmos o Brasil. 


Leonardo Malcher 

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