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Entre Macumbas e a Música Brasileira: o novo álbum de Jéssica Ellen

sábado, 06 de fevereiro de 2021

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Parece fácil fazer um disco sobre o universo das macumbas no Brasil, mas não é. O fato é que as religiões de matriz africana são tão ricas, trouxeram da África tantas entidades, costumes e formas de vida, e criaram tantos outros em terras brasileiras que é fácil buscar nelas temas e inspirações, ritmos e melodias.

Por outro lado, a efervescência musical desse universo é tão pulsante que inclui a obra de grandes estudiosos do assunto, como Letieres Leite e a Orkestra Rumpilezz, ou, então de notórias turistas, como Baden Powell e Vinicius de Moraes, cada um com uma produção vibrante, abrindo tantas portas para as músicas dos terreiros.

Existem também, às centenas, os casos de músicos e musicistas que frequentam, aprendem e desenvolvem sua musicalidade frequentando esse universo: Zeca Pagodinho e Maria Bethânia, Dorival Caymmi e o grupo Bongar, Mariene de Castro e Arlindo Cruz. Há, ainda, outros casos muito interessantes e particulares, como o macumbaião, lançado na década de 50 por J.B. de Cavalho. Além, é claro, de toda a rica produção dos CDs que se direciona a realizar versões de cantigas de santo, com o recente “Obatalá - Uma homenagem à Mãe Carmen”, assinado pelo Grupo Ofá, indicado ao Grammy Latino em 2020.

Maria Bethânia e Mãe Menininha do Gantois (Foto: Reprodução/Acervo O Globo) 

Há de se ter, assim, algum tipo de ousadia para se realizar apostas musicais nessa área tão nobre de nossa música. Mesmo alguns dos grandes músicos eruditos do país, como Guerra-Peixe e Camargo Guarnieri, ficaram completamente absortos na musicalidade desse universo, ao entrar em contato com ele. Afinal, não há conservatório no mundo que possa ensinar os toques do candomblé como os mais velhos ensinam aos seus mais novos ao longo de anos de observação nos terreiros.

No último mês, tive uma grata surpresa ao ouvir uma nova obra desse universo: o segundo álbum da cantora Jéssica Ellen, intitulado “Macumbeira”. O álbum parece seguir uma receita de sucesso: uma cantora bem resolvida, compositores versados no mundo das macumbas, com o naipe de Moacyr Luz e Luiz Antonio Simas, participações de alto nível, como Zezé Motta e Pretinho da Serrinha e instrumentos soando sempre delicados e precisos, sob a direção musical de Rafael dos Anjos.

O importante é que, para além de qualquer currículo, o disco é uma delícia de se ouvir. Com o mote central de homenagear as entidades da umbanda, estas vão aparecendo faixa a faixa: Pombagiras, Ciganas, Pretos-velhos, Malandros, Erês e Orixás se encontram, unindo letras inéditas a releituras de cantigas que circulam pelos terreiros do país. Para quem é de santo, especialmente, não há como ouvir uma canção como “Pai Benedito”, de Moacyr Luz, em homenagem aos Pretos-velhos, e não se emocionar.

Há de se destacar, também, a canção-manifesto que dá nome ao álbum, “Macumbeira”, com letra de Luiz Antônio Simas. A composição conflui com a obra mais ampla do escritor,  em que defende a assunção do termo macumba para designar uma visão de mundo, que não se restringe a religiões de matriz africana específica, mas que parte delas, designando um universo em que essas pessoas vivem, que se fundou na possibilidade de subverter preconceitos raciais para criar um modo de viver no encantamento da vida.

E esta canção, na voz de Jéssica Ellen, é um manifesto em defesa desse modo de ver o mundo, um recado venal, direcionado a quem quer exterminar os terreiros, em resposta triunfante dos macumbeiros que sabem estar protegidos e firmes no seu propósito, afinal, cada terreiro que insiste em se manter aberto, cada novo iniciado, é garantia da continuidade dessas formas de vida. E, também, a cada álbum como esse, a cada compositor que se dedica a cantar essa forma de viver, crescem e se fortalecem essas comunidades.

Afinal, se as macumbas são um manancial inesgotável de musicalidade, ao qual a música brasileira deve muito de sua inventividade, essa relação é uma via de mão dupla. Também a música brasileira pode continuar a fazer, cada vez mais, o papel que desempenhou durante o século XX: ser uma parceira na erradicação do racismo religioso, usando o seu alcance para fazer com que outras pessoas conheçam a força e o acolhimento das macumbas e fazer com que filhas de santo, onde estiverem, sintam orgulho de sua tradição.

O mais bonito, deve-se destacar, é que esse movimento político musical tão importante não causa o sentimento de obviedade que canções de protesto podem causar. Isto porque canções que se pretendem politizadas podem recair na obviedade, de tão cheias de convicções e com tanto foco na conversão de outros pontos de vistas para os seus que resultam em uma redução do seu potencial artístico em prol de uma clareza política

A lógica que rege o mundo das macumbas, porém, é outra. É justamente o acesso a um universo rico, cheio de sentidos e mistérios, contradições e negociações que age como impulsionador deste movimento político macumbeiro — e do qual este álbum é parte. Justamente o inverso da reafirmação de propósito e consequente redução de mundo proposto pelas canções de protesto: a multiplicação de possibilidades de vida proposto pelas macumbas.

Graças a esse esforço e a obras como essa, cada vez mais, é impossível falar em qualquer manifestação como macumba como uma possível ofensa. O álbum é, enfim, mais um motivo para que as macumbeiras fiquem orgulhosas do legado que levam adiante, todos os dias.


Heitor Zaghetto

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