Colunista Convidado

Em 'Conforme eu sou' a pastora Tia Surica canta seu poeta Manacéa

terça, 29 de junho de 2021

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Baluarte da escola de samba Portela e uma das integrantes de sua mitológica Velha Guarda, Iranette Ferreira Barcellos, a Tia Surica, comemora 80 anos a bordo de uma preciosidade, o CD “Conforme eu sou” (Independente). Trata-se de uma antologia da obra de um dos mais importantes compositores da escola, Manacé José de Andrade, o Manacéa, o mais eloquente do trio de talentosos irmãos compositores, completado por Mijinha (Bonifácio Andrade) e Aniceto (José de Andrade). É um ajuntado de pérolas colhidas nos quintais de Madureira e Oswaldo Cruz, em que o samba reinava na base do improviso e da oralidade, soerguido pelo coro de pastoras. Vozes nuas e crestadas como a de Tia Surica, alçada à Velha Guarda exatamente por Manacéa, que completaria 100 anos em 2021. A menina, que aos 4 anos, presa à cintura da mãe, Judith, já desfilava entre as baianas da azul e branco, teve a voz gravada pela primeira vez, em 1957, no disco “A vitoriosa escola de samba Portela”, no coro de pastoras, ao lado de Marlene, Conceição, Mocinha e Iramaia. Em 1966, com Maninho e Catoni, foi puxadora oficial da escola no samba enredo “Memórias de um Sargento de Milícias”, de ninguém menos que Paulinho da Viola, vitorioso do carnaval daquele ano. Em 1980, a convite de Manacéa, Tia Surica entrou para a Velha Guarda da Portela. A seus dotes vocais somaram-se os da gastronomia, quando ela assumiu as panelas da feijoada da Família Portelense. Um cargo de responsa, num ambiente que o mesmo Paulinho havia celebrado, no “Pagode do Vavá”, “o famoso feijão da Vicentina/ só quem é da Portela sabe que a coisa é divina”.


Foto: Thais Monteiro


Fiel ao bairro onde nasceu, residente numa casa de Vila próxima à escola, Tia Surica ficou famosa por festas memoráveis, como na tradição das ancestrais baianas da Praça Onze. O cenário foi imortalizado por uma portelense mais jovem, a cantora e compositora Teresa Cristina, na composição “Cafofo da Tia Surica”, que gravou com a própria, no disco de estreia dela, no selo Fina Flor, em 2004. O repertório coleciona bambas portelenses (Candeia, Casquinha, Chico Santana, Antonio Caetano, Picolino  da Portela, Alcides Malandro Histórico, Jair do Cavaquinho, Manacéa, Mijinha e Aniceto) e participações da Velha Guarda e de seu atual decano, o grande Monarco. Dedicado às memórias de Dona Neném, viúva de Manacéa e uma das matriarcas da escola, e ao magnífico compositor Aldir Blanc, o novo disco tem arranjos e direção musical do heráldico Paulão Sete Cordas. Ele divide o encordoamento dos belos sambas de quadra e de terreiro do portelense com Rogério Caetano (7 cordas), Luis Barcelos (bandolim e cavaco solo numa das faixas), Marcio Vanderley (cavaco base) e Alessandro Cardozo (cavaco solo em outra faixa). Nos sopros, pontifica Dudu Oliveira (flauta, sax soprano) e nas percussões, diversificadas e condutoras, Waltis Zacarias, Léo Rodrigues, Rodrigo Reis e Paulino Dias (surdo, pandeiros, tantan, cuíca, caixas, vassoura, prato e faca). No coro, Iracema Monteiro, Lazir Sinval, Narinha e Deli Monteiro.


Estilista melódico refinado, Manacéa destila lirismo em versos certeiros como os do abre alas do disco, o cadenciado/empolgação “Conselho de mamãe”: “o que é que você tem?/ não é esse seu normal/ você só pratica o bem/ só lhe pagam com o mal alegria, meu filhinho, alegria/ manda a tristeza embora e caia na folia”. Do também cadenciado “Sempre teu amor” foi extraído o verso que intitula o disco, “Conforme eu sou”. No descritivo “Manhã brasileira” (“quando amanhece/ o céu resplandece/ os raios de sol a brilhar/ / os passarinhos começam a cantar/ anunciando a manhã brasileira”), a encantatória Tia Surica endossa o auto retrato do autor: “Deus fez de mim um poeta/ escrevi em linhas retas/ essas rimas todas certas”. Também intuitivamente ecológica “A natureza”, (“quando se aborrece/ toda a beleza na terra desaparece”) atesta que o poeta também é capaz de desconcertar os adeptos da simetria: "És tão linda natureza/ que nem sei te divulgar"


Também audaciosa é a arquitetura de seu maior sucesso, o lamento “Quantas lágrimas”, que Cristina Buarque elevou às paradas: “se houvesse retrocesso na idade/ eu não teria saudade da minha mocidade”. Fugindo do óbvio, ela não recanta a faixa, mas sola em outra, “Inesquecível amor” (“a saudade ficou no meu coração/ foi um deslize na vida”). Filha de Manacéa, a cantora Áurea Maria participa da redentora “Volta meu amor” (“Não deixe, Criador/ eu sofrer assim/ faça voltar esse amor pra mim”), em que é parceira do pai. E a Velha Guarda da Portela instaura a definitiva epifania do disco, nas faixas “Flor do interior”, ode a Clara Nunes, outro ícone da azul e branco, é “Carro de boi” (“vai buscar meu boi pintado, lá no curral”), que evoca lembranças rurais do subúrbio. “Não tenho ambição neste mundo, não/ mas sou rico da graça de Deus”, decreta o reflexivo “Nascer e florescer” (“para mais tarde morrer”), outra pérola reluzente do vate do samba, que retine na voz cativante de sua devota pastora. 


Tárik de Souza

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