Dona Ivone Lara: a construção de uma referência feminina no samba
por Bruna Aparecida Gomes Coelho
O nome dispensa apresentações. Dona Ivone Lara nasceu em 13 de abril de 1922 na cidade do Rio de Janeiro e se tornou um ícone do samba, além de ser uma importante referência para as mulheres sambistas. Este mês, em seu centenário de nascimento, é necessária uma reflexão sobre sua trajetória e seu legado como uma representante feminina desse universo cultural.
Dona Ivone ficou órfã ainda muito pequena e foi estudar em um colégio interno, onde teve acesso a uma boa educação, fato que a ajudou ao longo de sua carreira como cantora e compositora. Teve aulas de música com as professoras Lucília Villa-Lobos, esposa do maestro Villa-Lobos, e Zaíra Oliveira, primeira esposa de Donga, que lhe indicaram para o Orfeão dos Apinacás, da Rádio Tupi, cujo regente era Heitor Villa-Lobos. Assim, podemos afirmar que ela teve uma educação musical clássica, mas também popular: seu pai era violonista e componente do Bloco dos Africanos; sua mãe era pastora do Rancho Flor do Abacate; seu tio Dionísio Bento da Silva (que lhe acolheu após o falecimento de seus pais) tocava violão de sete cordas e fazia parte de um grupo de chorões que reunia Pixinguinha e Donga, além de ele ter lhe ensinado a tocar cavaquinho; seu primo, Mestre Fuleiro, foi um dos fundadores da Império Serrano em 1947. Enfim, sua família tinha uma vivência com a cultura popular e por meio desse convívio a artista esteve próxima desses nichos do samba. Casou-se com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da Escola de Samba Prazer da Serrinha. Era enfermeira e exerceu a profissão por muitos anos, além de ter se formado como assistente social.
Após se aposentar, em 1977, passou a se dedicar exclusivamente à carreira artística, que era incentivada por seu marido. Este fato é comprovado em entrevista concedida à jornalista Mara Caballero, em matéria publicada no Jornal do Brasil (RJ) em 3 de setembro de 1977. Ao ser questionada sobre o motivo de ter parado de desfilar na avenida, a sambista respondeu:
Por enquanto, perdi o gosto. Em dia de desfile, ele [meu marido] alugava uma Kombi só para me levar e trazer no final. Quem vai fazer isso por mim? [...] Ele me achava extraordinária. Éramos unidos, juntávamos o que ganhávamos e hoje temos dois filhos formados com curso superior. Ele me incentivava na minha carreira artística. Ria e dizia: “Minha mulher depois de velha é artista”.
(Dona Ivone Lara, Jornal do Brasil, 1977)
Contudo, vez ou outra ela precisava driblar o marido para conseguir concluir suas composições ou comparecer em apresentações. Em 1965, ela ingressou para a Ala de Compositores da Escola de Samba Império Serrano, se tornando a primeira mulher do grupo. Além disso, foi também a primeira mulher que teve o reconhecimento por compor um samba-enredo: naquele ano, o tema da Império Serrano era os “Cinco Bailes da História do Rio”, e o samba foi assinado em conjunto com Silas de Oliveira e Bacalhau. Todavia, para conseguir defender sua canção na quadra da escola e conseguir ser campeã, Dona Ivone precisou “tapear” seu marido com a ajuda de seus companheiros de composição, porque foi necessário se ausentar de seu lar: ao fim da noite o samba estava pronto e ela só chegou em sua casa “às cinco da manhã do dia seguinte” (Jornal do Brasil, 1977).
Seu primeiro disco foi gravado pela Copacabana em 1970, e recebeu o título de “Sambão 70”. Ao longo de sua carreira foram cerca de 30 gravações entre LPs, CDs e DVDs. A pesquisadora Mila Burns (2021: 73-74) frisa que uma mensagem política foi sendo construída até mesmo nas capas de seus discos, principalmente em “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz” (1978/EMI-Odeon), “Sorriso de Criança” (1980/Odeon) e “Sorriso Negro” (1982/Warner), pois o modo como a artista foi representada nas referidas capas aponta para uma “posição de autoridade e destaque” de uma mulher negra que alcançou o sucesso. Segundo a autora, “a imagem de Dona Ivone Lara nesses trabalhos tornou-se uma inspiração e referência para as mulheres e pessoas negras do Brasil” (BURNS, 2021: 74).
Capa do álbum 'Samba minha verdade, samba minha raiz', de Ivone Lara — Foto: Ricardo de Vicq / Reprodução
Dona Ivone se dedicava ao tradicional “samba de raiz”, sendo considerada uma “inconformista” se considerarmos o fato de que ela quebrou “padrões há muito estabelecidos na música brasileira e no meio dos sambistas” (BURNS, 2006: 71-72). Contudo, ela sempre explicou sobre as dificuldades para ser reconhecida como compositora de samba. Isso pode ser observado em entrevista concedida à pesquisadora Mila Burns, quando ela foi questionada sobre quem seriam suas sucessoras na música:
Neste trecho é possível observar o reconhecimento da artista quanto ao meio machista em que ela estava inserida e como em sua perspectiva isso não mudou ao longo dos anos. Contudo, mesmo diante de tantas dificuldades é inegável que sua trajetória inspirou diversas mulheres de diferentes gerações. Dorina (2020), cantora e idealizadora do Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba, considera que o caminho das mulheres na música, principalmente no samba, é difícil e que isso pode ser “verificado pelo exemplo de Dona Ivone Lara”.
Nilze de Carvalho (cantora, compositora e instrumentista), que chegou a ser apontada como sucessora de Dona Ivone (BURNS, 2006: 102), fortalece a figura desta como uma mulher que teve um caminho duro para ser reconhecida como compositora. Nilze aponta a sambista como uma figura feminina muito importante no cenário musical, principalmente no quesito composição, além de ter aberto caminho para outras mulheres se consolidarem nesse gênero musical, enfatizando a mudança de posição delas ao longo dos anos dentro da própria dinâmica e organização do samba:
Nina Rosa, cantora e instrumentista, narra um episódio que considera importante em sua história dentro da música, porque o seu primeiro contato com a história de Dona Ivone Lara lhe causou um grande impacto:
Os relatos destas três sambistas, que atuam em diferentes nichos do samba, demonstram o quanto Dona Ivone Lara marcou e inspirou gerações. Sua história marcada por lutas e vitórias fez com que o seu nome fosse escrito no panteão do samba, ao lado de importantes figuras desse espaço cultural e musical. Em momentos díspares, e através da narrativa de outras mulheres do samba, é possível observar a existência de uma reverência à detentora de um importante legado: Dona Ivone Lara, a Rainha do Samba.
Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e realizou as entrevistas com as sambistas Dorina, Nilze de Carvalho e Nina Rosa para sua pesquisa, na qual discute a memória de mulheres do samba. Contato: bruna.agcoelho@gmail.com.
Fontes Orais
Dorina. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 7 out. 2020.
Nina Rosa. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 30 abr. 2021.
Nilze Carvalho. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 24 ago. 2021.
Fontes Documentais
Jornal do Brasil (RJ) - edição de 3 de setembro de 1977
Acervos Consultados
IMMuB
Dicionário Cravo Albin
Hemeroteca Digital
Referências
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar: gênero, projeto e mediação na trajetória de dona Ivone Lara. 2006. 125f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2006.
_______. Dona Ivone Lara: sorriso negro. Tradução Alyne Azuma. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Cobogó, 2021.
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