Colunista Convidado

Do Long Play ao Streaming: o forró reinventado em antologia dedicada ao Mestre Camarão

Por Luiz Ribeiro Fonseca

quarta, 14 de setembro de 2022

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A importância do Mestre Camarão (1940-2015) é algo inegável na história da música brasileira e, mais especificamente, nos anais que compõem a trajetória do forró. Nascido em Brejo da Madre de Deus, município do interior de Pernambuco, Camarão – ou Reginaldo Alves Ferreira – mudou-se ainda na década de 1960 para a cidade de Caruaru. É ali onde recebe seu apelido – uma pilhéria pelo fato de sempre estar com a tez rosada –, e onde grava também o seu primeiro álbum, acompanhado pelo Trio Nortista: “Lá vai Brasa” (1964), lançado pelo selo Mocambo, da extinta gravadora pernambucana Rozenblit, é um LP mono, e o único em que ele toca e aparece na capa com uma sanfona de 8 baixos, instrumento tido como um dos “pais” do fole de teclado. 

Capa do primeiro álbum do Camarão, aproveitada na antologia dedicada a sua obra 

Em 1969, pela gravadora RCA, Camarão grava, já com uma sanfona de 120 baixos, o LP instrumental “A bandinha do Camarão”, no qual introduz naipes de metal em gravações de forró, tornando-se assim o precursor de uma estrutura musical que iria reverberar na discografia de bandas como Mastruz com Leite e de cantores como Jorge de Altinho. Ao longo de sua carreira, gravou mais de 20 LPs e compôs em parceria com diversos nomes, a exemplo de Dominguinhos, Genaro e Walmir Silva. Em 2003, foi eleito Patrimônio Vivo de Pernambuco. 

É no ano de 2018, entretanto, que sua obra alcança um curioso – e pouco evidenciado – feito: 16 músicas suas são relançadas em uma antologia do selo internacional Analog Africa. Criado em 2006 pelo DJ tunísio-alemão Samy Ben Redjeb, o Analog Africa desenvolveu-se a partir de um trabalho de garimpagem em LPs e compactos 78 RPM. Com o tempo, tornou-se conhecido por preservar e divulgar, em compilados ou álbuns temáticos, bandas de diversos países africanos, a exemplo do Senegal e da Angola.

Assim, intitulada “The Imaginary Soundtrack to a Brazilian Western Movie”, ou, em tradução literal, “A trilha sonora imaginária de um filme de faroeste brasileiro”, a antologia dedicada ao Mestre Camarão conta com peças instrumentais e canções gravadas entre os anos de 1964 e 1974, além de fotos exclusivas de diferentes fases do sanfoneiro pernambucano.

Camarão (na moto) e o Trio Nortista a pé

Alinhando-se com a perspectiva cinematográfica do título da coletânea – que parece citar realizadores como Sergio Leone e Quentin Tarantino –, ouvimos portas batendo e vozes em tom de briga nos primeiros minutos de “Retrato de um forró”, canção que abre o álbum. A seguir, modulando o tom das estrofes e do refrão, a sanfona se mistura com o triângulo e ouvimos a voz de Azulão, artista de Caruaru: “Quando tu balança, dá um nó em minha pança / Quando tu balança, dá um nó em minha pança / Madrugada entrando e o fole gemendo / Poeira subindo e o suor descendo”.

Seguindo a linhagem de forrozeiros como Onildo Almeida e o próprio Luiz Gonzaga, Camarão flerta com o choro e a marcha na terceira faixa do trabalho, intitulada “Rio Antigo”. Muito em virtude da sugestão dada por Redjeb, é impossível não imaginarmos uma sequência se desenrolando ou lembrarmos de filmes como “Tatuagem” (2013), do pernambucano Hilton Lacerda. Destaque aqui para a tuba que, acompanhada do clarinete e do triângulo, dá um caráter carnavalesco à peça instrumental. 

Considerado um espécie de gênero musical “guarda-chuva”, o forró, cujo sustentáculo é a figura de Gonzaga, foi alçado à condição de febre nacional nos anos 1940, e, depois de mais de 80 anos, continua a aglutinar admiradores ao redor do mundo. Desse modo, na antologia da Analog Africa, o que se percebe é uma reconfiguração musical que confere aos sons e paisagens de Pernambuco um tom misterioso e deliciosamente momesco. Subvertendo o risco de exotizar as musicalidades de um país que não o seu, o trabalho de Redjeb procura evidenciar uma parte importante da memória musical do país, personificada na figura e no legado do Mestre Camarão.

Confira aqui a antologia “A trilha sonora imaginária de um filme de faroeste brasileiro”.



Luiz Ribeiro Fonseca é jornalista e mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). Pesquisa fonogramas de maracatu gravados na primeira metade do século XX. 



 


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