A música de

Do guarani ao guaraná: um anti-manifesto tropicalista

por Tiago Bosi Concagh

sexta, 10 de julho de 2020

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A primeira coisa que se faz fundamental compreender acerca do LP de Sidney Miller"Brasil, do Guarani ao Guaraná" (Elenco, 1968), é que se trata de um disco-manifesto. Diferente de seu LP homônimo de 1967Miller apresenta uma estética bastante distinta e um projeto de canções em diálogo entre si e com outras canções do período. Ademais, Miller havia angariado para o disco um número considerável de artistas de peso da MPB, dentre os quais, alguns que tinham se filiado em um primeiro momento à estética Tropicalista e participado, no mesmo ano, do LP seminal deste movimento "Tropicália ou Panis et Circenses" (Philips, 1968).

Dois elementos saltam aos olhos ao analisar a capa do LP: a tipografia utilizada na escrita do nome do compositor e os motifs utilizados ao redor de Miller com desenhos de flores e plantas criando uma “moldura de natureza”. No topo dessa moldura estão dois querubins e acima deles duas pombas, uma argola e o que parecem ser dois morros.

Capa do álbum "Brasil, do guarani ao guaraná"/Reprodução. 

O disco de Sidney Miller de 1967 já denotava uma tipografia associada à estética do psicodelismo, mas, como no LP de Caetano Veloso do mesmo ano (aqui), o conteúdo estético-ideológico das canções, pouco, ou nada, tinha que ver com o movimento encabeçado na época por nomes como BeatlesSantanaRolling StonesJefferson Airplane e Jimmy Hendrix Experience.

Curiosamente, parte da Jovem Guarda absorve fração desse repertório ao menos um ano antes do Tropicalismo, em especial aquele derivado do brit rock, enquanto o Tropicalismo demonstra, ao menos esteticamente, influência substancial daquelas que seriam as referências no Festival de Woodstock em 1969.

Reprodução. 

INFLUÊNCIA INDIANISTA

Assim como a temática flower power aparece na tipografia da capa, também contrasta com ela a moldura ao redor da imagem de Sidney Miller. Como destacado anteriormente, a moldura é composta de flora com querubins e duas pombas no topo. O segundo elemento da capa são os motifs ou clichês, como eram chamadas no Brasil as gravuras e galvanotipias feitas ao longo do século XIX e início do XX com intuito de gravar símbolos clássicos como brasões familiares, escudos militares, imagens de santos, temas republicanos, temas carnavalescos, molduras, flora e fauna, e até arcadas dentárias. Tais clichês remetiam também ao imaginário social que perpassava determinada sociedade – no caso, a sociedade brasileira pós-colonial entre o Império e a República.

É importante fazer um parêntesis para comentar a importância desses clichês surgidos a partir de uma inspiração europeia, em especial provinda da França e da Inglaterra, que carregavam elementos com variações entre temas neoclássicos, motifs da art déco e em catálogos de botânica. Nesse último quesito, há uma variação de temas que remetem à natureza brasileira: flores exuberantes, bromélias, e folhagens tropicais – as mesmas representações presentes na capa do LP de 1968 de Miller, formando a “moldura de natureza”. O ideário romântico oitocentista que inspirou os indianistas brasileiros e toda uma visão de um processo civilizatório pautado na relação entre o europeu (civilização) e o índio (natureza) que teria forjado a nação brasileira, estava fortemente pautado pela representação da natureza como elemento central da constituição de nossa identidade. Ou ainda, a ideia latente da necessidade de constituir uma “nacionalidade essencial”. Dentre os indianistas mais célebres estava José de Alencar que escreveu O Guarani em 1857, inspiração para a ópera Il Guarany de Carlos Gomes estreada em 1870.

Retrato de Carlos Gomes/Reprodução. 

A referência à natureza como construção identitária do Brasil a partir da visão novecentista se funde ao título do LP de Miller cuja inspiração era a própria canção que abre a obra, "História do Brasil" de Lamartine Babo, composta para o Carnaval de 1934. A marchinha satírica de Babo traz uma visão justaposta da história nacional amalgamando as relíquias do Brasil sob o irônico mote do refrão: “Quem foi que inventou o Brasil?/ Foi Seu Cabral!/ Foi Seu Cabral!/ No dia 21 de abril/ Dois meses depois do Carnaval”. Assim, a marcha de Babo busca subverter a história nacional, demarcando a “invenção do Brasil” por Pedro Álvares Cabral ao mesmo tempo em que reafirma o Carnaval como nossa essência original – precedendo em dois meses “a invenção do Seu Cabral”. O rol de relíquias do Brasil – Guarani, guaraná, feijoada, Carnaval, Parati – e as menções a Ceci e Peri do romance de José de Alencar, todas presentes na marchinha de Lamartine Babo, sustentam a visão de uma história nacional subvertida e de narrativas e elementos sobrepostos.

GUARANI, GUARANÁ E OS VÁRIOS BRASIS

O título do LP de Sidney Miller de 1968, "Brasil, do Guarani ao Guaraná", também surge como elemento provocativo que entra no jogo de símbolos e relíquias nacionais que Miller vai elencando. O “Guarani” poderia se referir a uma das obras máximas de nossa representação de nacionalidade – ou a ópera de Carlos Gomes como símbolo da proposta civilizatória do XIX – mas também a marca de nossa “primeira natureza”, indígena e tida como bárbara. Internamente, carrega as próprias contradições de um projeto de nação-povo oitocentista. Já o “Guaraná” também seria uma representação de nossa natureza; de uma flora autóctone. Entretanto, simbolizava também o refrigerante nacional, concorrente da Coca-Cola que, por sua vez, aparecia como símbolo jovem, por exemplo, na canção "Alegria, alegria" de 1967. Miller joga cuidadosamente com a natureza polissêmica dos signos em questão. Trabalha tradição e modernidade de forma articulada e justaposta reiterando os paradoxos de um país que parecia conjugar a promessa sempre latente de modernidade como o peso de todo um atraso estrutural e das contradições de nossas construções identitárias românticas e modernas.

Entretanto, o jogo de signos polissêmicos que Miller apresenta parece negar a todo o momento qualquer elegia a um projeto universal-popular. O cancionista, assim, apresenta as contradições dos projetos nacionais e a subversão das hierarquias e narrativas a partir da história do Brasil. Apresenta também uma sobreposição de relíquias do Brasil. Porém, em nenhum momento busca um diálogo direto com as questões mais latentes da época no que tange à contracultura, ao rock, ao psicodelismo, e ao próprio Tropicalismo. É como se o LP sugerisse um diálogo com os muitos projetos de brasis ao invés de dialogar ou incorporar aquilo que se convencionou chamar de um ”som universal”. Ou ainda, é como se a opção por realizar tal mergulho na cultura nacional fosse em si a resposta às questões que permeavam o campo da cultura no efervescente biênio de 1967-68.

As demais canções do LP reiteram tais constatações. Miller parece optar em geral pelos gêneros nacionais e busca por meio destes estabelecer um fio condutor ao longo do disco, reiterando a ideia de um “mergulho no Brasil”.

IDEÁRIO NACIONAL-POPULAR

Dessa forma, no que tange a organização do LP de Miller de 1968, o repertório tende a temas afins ao ideário nacional-popular: cinco sambas, duas marchas, um choro, um baião, uma valsa, uma toada e uma guarânia.

A recusa pelos gêneros estrangeiros, e em especial ao rock denota que o LP não se propõe a dialogar com o universal-popular. A “modernização”, portanto, se dá a partir de uma rearticulação dos temas nacionais. Ou, como já comentado, as chamadas “relíquias do Brasil”, são revisitadas por um olhar conectado ao ideário nacional-popular. Isso se verifica tanto na contracapa do LP, que contém duas citações de Mário de Andrade, como no artigo publicado no mesmo ano pela RCB em que Miller traz visões críticas sobre o mercado fonográfico e sua relação com a suposta modernização da canção pelo rock.

Contracapa do LP "Brasil, do guarani ao guaraná"/Reprodução. 

A figura e as ideias de Nelson Lins e Barros, falecido havia quase dois anos, ecoam no artigo de Miller e no LP. O retorno à tradição, e a rearticulação da mesma buscando um essencialismo das expressões de brasilidade, porém, sem recorrer aos estrangeirismos, eram bandeiras do físico e crítico musical. Ou seja, o iê-iê-iê ainda era considerado como o suposto nêmesis da canção popular brasileira, porém, sustentava-se que a modernização e os avanços estéticos da Bossa Nova deveriam ser mantidos.

Entendemos também as contradições e problemáticas daquilo que se propunha já que no contexto em que a Bossa Nova incorporou harmonizações do jazz ao mesmo tempo em que sintetizou a batida do samba. Duas conquistas estéticas complexas que caminharam juntas a partir do grande salto de João Gilberto. Para Sidney Miller, havia uma hierarquia da canção que permitia a incorporação das harmonizações do jazz a priori, desde que usadas com parcimônia e desde que o material popular fosse respeitado e posto à frente. Porém, o rock – vulgo iê-iê-iê – não apresentava, na visão do compositor, os mesmos elementos “modernizantes”, e sua aparente simplicidade não acrescentava em nada ao processo que acabou sendo conhecido como “linha evolutiva” da MPB.

Assim, se o Tropicalismo incorporava as possibilidades de inovação que o rock do fim de 1960 oferecia, os artistas ligados ao campo cultural nacionalista não enxergavam essa mesma veia modernizante preferindo, dessa forma, ater-se à Bossa Nova, ao jazz e aos gêneros nacionais atrelados à “autenticidade”. O Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro esteve, nesse sentido, e desde sua criação, bastante afinado com tais preceitos, assim como boa parte dos “folcloristas urbanos” que estiveram envolvidos com sua criação.

MPB, TROPICALISMO E OS PROJETOS DE MODERNIZAÇÃO DA MÚSICA BRASILEIRA

Nesse complexo e múltiplo momento entre 1967-1968 em que os caminhos da canção pareciam estar em aberto, o projeto de Sidney Miller foi, de certa forma, na contramão de boa parte das propostas estético-ideológicas em pauta. Não era um ideário nacional-popular sustentado estritamente pela “autenticidade”. Havia, nesse sentido, uma tentativa de modernização. Uma proposta de releitura da tradição como também fazia pari passu o Tropicalismo.

Havia uma consciência histórica surpreendente do cancionista em relação ao seu repertório: desde a escolha dos intérpretes para cada canção; o ordenamento das canções no LP; os arranjos e a escolha dos arranjadores.

Entendemos a questão do viés de mercado imbricado no LP e não subvalorizamos tal diretriz, mas destacamos que existe também uma proposta autoral de Miller bastante contundente em especial pelo fato de dez das doze composições do LP serem de sua autoria.

Os artistas escolhidos para integrar o LP como intérpretes foram: MPB-4: "Quem dera" e "Maravilhoso", Nara Leão com "Maria", Jards Macalé em "Seresta", Paulinho da Viola com "Filosofia", Gal Costa com "Ora", acho que vou-me embora"Gracinha Leporace: "Valsa", Banda do Canecão com "Cidade Maravilhosa". Os instrumentistas Oberdan Magalhães e Paulo Moura também foram convidados pra integrar LP com a música instrumental "Choroso".

Observamos, portanto, que havia uma proposta de integrar artistas destacados dentro da MPB com trajetórias que já vinham se consolidando. Eram artistas que participavam ativamente dos festivais e compunham o núcleo duro da MPB do período – em especial nomes como Nara Leão, o grupo MPB-4Paulinho da ViolaGal Costa e Jards Macalé.  No que tange ao rol de artistas selecionados, o LP poderia ser comparado ao antológico "Tropicália ou Panis et Circences" (Philips, 1968). O LP, considerado o marco zero do Tropicalismo em disco, reunia também um grupo grande de artistas e poetas, dentre os quais: Caetano VelosoGilberto GilOs MutantesTorquato NetoNara LeãoTom ZéGal CostaOberdan Magalhães (saxofonista virtuoso que depois formaria a antológica Banda Black Rio), entre outros.

Estavam presentes no disco de Miller os grandes destaques da MPB do período, em especial, aqueles que no festival de 1967 já apresentaram um novo paradigma para a canção brasileira: VelosoGil Os Mutantes.

``TROPICÁLIA`` OU ``PANIS ET CIRCENCES``

A comparação entre os LPs "Brasil, do Guarani ao Guaraná", de Sidney Miller, e "Tropicália ou Panis et Circences" se dá estritamente no sentido de apresentar o que entendemos como dois discos-manifestos com propostas estético-ideológicas díspares. Entretanto, sem de fato entrarmos em uma comparação mais aprofundada, podemos dizer que o LP Tropicalista possui pontos de convergência temática com o LP do Miller no sentido de uma releitura do ideário nacional-popular. Também se enxergam as “relíquias do Brasil” como tema recorrente e questões como a subversão dos cânones nacionais. As premissas para tal revisitação poderiam ser bastante diferentes, mas a questão se faz latente em ambos. No mais, evidentemente que o diálogo com o rock e a contracultura no LP Tropicalista já denota a diferença mais gritante entre as propostas estético-ideológicas.

Porém, vale a comparação: seriam de fato dois discos-manifesto que se colocam em diálogo tanto com o momento cultural de 1967-68, como também com a discussão mais complexa acerca do projeto modernista e com o ideário nacional-popular?

Vale também destacar que em depoimentos da época, Miller afirmou que em nenhum momento se viu promulgando um projeto “anti-Tropicalista”. O cancionista respeitava e buscava também dialogar com os artistas que gravitavam ao redor do Tropicalismo – casos de GalNara Jards. E a recíproca parece ter sido verdadeira já que Gal Costa gravou a canção "Maria Joana" de Miller em seu LP "Domingo" (Philips, 1967) em parceria com Caetano Veloso – ainda que tenha feito um arranjo mais “Bossa Nova”. Mesmo Torquato Neto, por meio de suas discussões acerca da “modernização da MPB”, em sua coluna no Jornal dos Sports afirmou que os caminhos para determinada “modernização” estavam em aberto, e colocou Sidney Miller como um daqueles que buscavam tal modernização.

Apesar dos diferentes movimentos tentarem se afirmar dentro da indústria fonográfica, podemos ver que havia porosidade entre os campos nas relações temáticas e nas aproximações com o ideário nacional-popular. A construção a posteriori a cerca da relevância e da potência dos LPs da época deve ser matizada considerando também as narrativas construídas acerca de uma história da MPB em 1970 e 1980. Ainda que devamos entender os movimentos do período em suas especificidades e projetos, é inegável que havia uma relativa transitoriedade de artistas entre gêneros e movimentos do período que se fará ainda mais forte nos anos 1970.

A partir dessas constatações acreditamos ser possível afirmar a importância do LP de Miller "Brasil, do Guarani ao Guaraná" como um LP determinante dentre os projetos estético-ideológicos do período. Tanto o rol de artistas que participou do LP, como as questões levantadas por Miller, reafirmando um ideário nacional-popular, mas ao mesmo tempo buscando problematizá-lo dentro dos debates em pauta, demonstram a complexidade e a densidade da obra de Sidney Miller.



Tiago Bosi Concagh é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. 


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