Música

"Com açúcar, com afeto": as músicas femininas de Chico Buarque

terça, 25 de junho de 2019

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Uma das marcas registradas de Chico Buarque é sua capacidade de assumir a posição feminina em suas músicas, compondo – e interpretando – na primeira pessoa enquanto uma mulher. Essa vertente de sua obra rendeu diversos clássicos arrebatadores para a música popular brasileira.

É possível falar dessa faceta de Chico Buarque a partir de alguns casos exemplares, que se relacionam também com as cantoras que deram vida a essas canções e se consagraram como três das principais intérpretes da obra de Chico Buarque: Nara Leão, Maria Bethânia e Gal Costa.

A responsável por iniciar Chico no caminho das canções femininas foi Nara Leão, pois foi sob encomenda dela que ele compôs "Com açúcar, com afeto", sua primeira música nesse estilo. Em 1967, Nara Leão já era considerada uma das mais importantes e mais sofisticadas cantoras do Brasil. Depois de ter se aproximado de Chico ao defender sua vitoriosa e bem sucedida "A Banda" no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1966, pediu a ele que fizesse uma canção no feminino, retratando uma situação ainda muito comum naquela época: a mulher sofrida e submissa que fica em casa esperando um marido que se perde na farra e na boemia da rua. E assim nasceu "Com açúcar, com afeto", que Nara lançou em seu primoroso disco de 1967, Vento de maio, que continha também outras duas composições de Chico Buarque: "Quem te viu, quem te vê" e "Noite dos mascarados". 

Muitas das canções femininas que Chico veio a fazer nos anos seguintes foram feitas também sob encomenda, muitas vezes para as peças de teatro que escrevia, o que facilitava o processo de vestir a pele dessas personagens femininas. Como o próprio Chico mencionou certa vez em uma entrevista, ao criar essas canções, costumava imaginar uma voz específica que poderia interpretá-las. É o caso, por exemplo, de "Folhetim". Apesar de ter sido composta para a peça Ópera do malandro, Chico a compôs pensando na voz de Gal Costa, que gravou a canção no disco Água Viva, em 1978. Gal deu a essa canção uma interpretação definitiva, num dos melhores desempenhos de sua carreira. Exalando sensualidade, entoava os versos que narravam os amores voláteis de uma prostituta: “Se acaso me quiseres/ Sou dessas mulheres/ Que só dizem sim/ Por uma coisa à toa/ Uma noitada boa/ Um cinema, um botequim”.

Outro exemplo marcante do “Chico feminino” é "Olhos nos olhos", canção eternizada por Maria Bethânia. Admiradora declarada de Chico, a Abelha Rainha costuma dizer que Chico é um dos autores mais importantes e mais recorrentes em sua obra. "Olhos nos olhos" foi composta por Chico em meados dos anos 1970. Depois de uma visita a um amigo que estava seriamente doente, Chico chegou em casa angustiado, com vontade de aliviar a tristeza compondo. Sentou e saiu essa canção que, embora não tenha relação direta com o episódio vivido por ele naquele momento, contém uma forte dramaticidade nos versos que narram uma mulher superando um abandono amoroso e dando uma espécie de “troco” no ex que a deixou: “E tantas águas rolaram/ Quantos homens me amaram/ Bem mais e melhor que você”. Bethânia registrou a música no disco Pássaro Proibido, em 1976, transformando-a num sucesso absoluto. Na época, "Olhos nos olhos" tocou até nas rádios AM, onde a MPB não costumava reverberar.

Estes são apenas três exemplos primorosos que retratam como Chico soube vestir poeticamente a figura da mulher, criando, assim, uma de suas marcas registradas. Muitos outros exemplos poderiam se somar a esses e não poderíamos deixar de citá-los brevemente: "Atrás da porta", que ganhou uma interpretação definitiva de Elis Regina em 1972; "Bárbara", que retrata o amor entre duas mulheres, gravada por Simone no disco Amar em ousado dueto com Gal Costa; e "O meu amor", interpretada em dois duetos de tirar o fôlego: um entre Elba Ramalho e Marieta Severo no LP Chico Buarque, de 1978, e outro entre Maria Bethânia e Alcione, também de 1978, presente no disco Álibi.

 


Texto de: Tito Guedes
Fontes:
HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Editora Leya, 2009.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. 


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