Música

Chico Buarque: vingador e maneiro

sábado, 08 de junho de 2019

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Chico nos vinga. Faz canções que gostaríamos de fazer, escreve os livros que gostaríamos de escrever (todos, não. Mas "Fazenda Modelo" e "Budapeste" me deixam morrendo de inveja), tem o charme e os olhos que gostaríamos de ter, quando veste sua alma com as idiossincrasias femininas diz coisas que adoraríamos ouvir de algumas mulheres e, dizem alguns, no campo do seu Polytheama ainda bate um bolão.

É assim, há mais de 40 anos. Desde Pedro Pedreiro que esperava o trem que não vinha, em certo 1964 cujos trens traziam o que havia de pior, que Chico nos vinga com o domínio mais puro e perfeito da poesia que nos parecia perdida. Depois nos vingou com suas provocações sutis e inteligentíssimas ao regime militar que a todos nós oprimia. Não tínhamos voz nem talento para o enfrentamento; Chico tinha. Estávamos todos ali, com ele, por meio dele, também repetindo que o pior ia passar e que amanhã ia ser outro dia. E parece que Chico nos ouvia. Pois a cada dia compunha mais, duelava mais, nos representava mais e melhor, nos enchia de brios e esperanças.

Chico Buarque de Hollanda, o menino da Maninha, que lembrava da jaqueira e ajudou a varrer tanta erva daninha, passou dos 60 anos, cultivando o sorriso que é quase grife – não se vê uma sombra de ódio ou de revanchismo em seu olhar – e o talento que impressiona a cada investida artística. Segue nos vingando. Tive a felicidade de entrevistá-lo durante quase quatro horas, juntamente com os demais editores e colaboradores da revista Bundas, no dia do seu aniversário de 56 anos, no ano 2000. Luiz Inácio Lula da Silva era apenas um costumaz perdedor de eleições, o Brasil vivia um interminável e cínico império tucano, e Chico já apontava para o que esperava que um governo socialmente comprometido viesse a fazer:

– Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico, que não se possa fazer no Brasil algo parecido com o que se faz em Cuba, que é um país tão pobre.

Vingou-nos pela inteligência e também pela simplicidade. Diante da pergunta de um dos tietes-entrevistadores (não há quem não se sinta tiete ao seu lado), “como você se sente, sendo o Chico Buarque?”, a resposta desconcertante:

– Eu não penso nisso. Tenho mais o que pensar.

Ao chegar em casa, a pergunta inevitável:
– Que tal a entrevista?
– Boa.
– Como é o Chico?
– Maneiro.

Pois me veio à mente certa noite no Carnaval de 1998, quando me preparava para ver o poeta pisar o chão de esmeraldas da Sapucaí, homenageado pela Estação Primeira de Mangueira. A caminho do desfile, passei num botequim do Estácio onde um grupo animadíssimo batucava e entoava versos que diziam assim: “Página infeliz da nossa história/ Passagem desbotada da memória.” Molequinho de uns 11 ou 12 anos, na porta do boteco, repetia a letra, tintim por tintim.

– Sabe de quem é esse samba? – perguntei a ele.
– Claro. Chico Buarque
– respondeu.
– Gosta de Chico?
– Pô!
– Que acha dele?
– Maneiro.



Texto extraído do livro "Com esses eu vou - De A a Z, crônicas e perfis da MPB", de Luís Pimentel.

Referência: Pimentel, Luís, 1953 - Com esses eu vou: de A a Z, crônicas e perfis da MPB / Luís Pimentel
Ilustrações Amorim. - Rio de Janeiro: Zit, 2006.

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