Entrevista

Cezar de Mercês, (muito) além do rock rural

por Moisés Santana

terça, 20 de dezembro de 2022

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O cantor, compositor e músico Cezar de Mercês, nascido no Rio de Janeiro (RJ) em 1950, se tornou mais conhecido por ter integrado a banda de rock O Terço, em diversas fases, entre os anos de 1969 e 1979. Esteve em grandes momentos do grupo, como a participação em festivais e na estreia do programa "Som Livre Exportação" (Rede Globo), em 1971.

No Terço, Cezar é responsável pela autoria de músicas emblemáticas na carreira da banda como, por exemplo, "Hey Amigo", do LP "Criaturas da Noite" (1975);  e "Flor de La Noche" e "Foi Quando Eu Vi Aquela Lua Passar", do disco "Casa Encantada" (1976).

Quando deixou O Terço, em 1979, Cezar seguiu carreira solo e lançou o álbum "Nada no Escuro" (1979), que teve participação, como regente, do grande maestro tropicalista Rogério Duprat (1932-2006). Ficou sem entrar no estúdio até 1986, quando gravou o segundo trabalho solo, "Luz na Escuridão". Além de seus discos como cantor, Cezar também tem atuação como compositor e fez músicas para Roberto Carlos, Nico Rezende e a banda 14 Bis, entre outros. Suas composições abordam o dia-a-dia de maneira poética.

Cantor e compositor Cezar de Mercês. Foto: Arquivo Pessoal.


Em um bate-papo com o jornalista e músico Moisés Santana, Cezar conta um pouco mais sobre suas vivências musicais. Leia a seguir:

Moisés Santana: Quero começar do início: como você se envolveu com a música?

Cezar de Mercês: Como a maioria dos músicos da minha geração, aos 14 anos eu assisti junto com outros amigos a estreia do filme “A Hards Day’s Night” ou “Os Reis do Iê-iê-iê”. Depois de várias sessões anotando tudo naqueles cadernos que traziam impresso o braço do violão, desde os acordes bem básicos até aqueles que nunca tínhamos visto, o vírus do rock nos infectou de vez.

Então, saímos dali para montar nossa primeira banda, chamava Os Elétrons. Um desses amigos adolescentes era o Sérgio Magrão, nós dois seguimos o caminho da música. Depois dos Elétrons, montamos um sexteto com um nome bem abusado, Joint-Stock Company, mas na época poucas pessoas notaram essa nossa provocação. Nesse sexteto, além de mim e do Magrão, estavam Jorge Amiden e Vinícius Cantuária, que depois iriam se juntar a Sérgio Hinds e fundar O Terço. Eu era amigo dos caras, e já compunha com eles, e nessa primeira formação, que eu não estou, eles gravaram um disco, e tem uma das primeiras parcerias que tive com o Amiden, “Saturday Dream”.

A minha entrada no Terço aconteceria algum tempo depois. Quando o Sérgio saiu pra tocar com o Ivan Lins, eu entrei no lugar dele. Logo depois o Sérgio voltou, nós passamos a ser um quarteto por um breve período, gravamos um compacto duplo, e depois nos tornamos um trio quando saiu o Amiden e gravamos o tal disco da capa verde, de 1972. Logo em seguida o Cantuária saiu para tocar com Caetano, “A Outra Banda da Terra”, aí o Magrão entrou com o Moreno.

Como você vê, éramos garotos de bairros vizinhos, Flamengo, Catete, ali no Rio de Janeiro, e eu creio que essa dinâmica era a mesma que aconteceu no mundo afora: adolescentes, vizinhos de bairro ou colegas de escola montando as primeiras bandas de rock.


MS: A sua geração enfrentou muito preconceito com relação a fazer rock no Brasil. O que é que movia vocês?

CM: É preciso entender o que acontecia no mundo na década de 1960, o chamado pós-guerra. Escancarou o mundo de autoritarismo que levou as gerações anteriores a um conflito baseado na imposição de ideologias totalitárias e disputas territoriais. Portanto, a nossa geração tinha ânsia de liberdade, uma necessidade visceral de criar sua linguagem e estabelecer seus próprios valores.

No Brasil, a década de 1950 foi de ufanismo. Um dos principais exemplos na música dessa megalomania Tupiniquim foi o surgimento do “samba-exaltação”: “Aquarela do Brasil”, “Brasil, Usina do Mundo”, tinham vários sambas assim. Mas por outro lado, houve avanços notáveis em todas as áreas do pensamento e das artes. O preconceito com o novo sempre foi presente na sociedade brasileira. Mesmo antes do surgimento do rock nacional na cena, os músicos e criadores da bossa nova também foram incompreendidos e criticados. Podemos dizer que o reconhecimento internacional foi fundamental para que os críticos internos percebessem a alta brasilidade e qualidade daquele novo produto cultural, sambas jazzísticos e sem “exaltação”.

O rock, é claro, também teve os seus detratores, e não foi só terreno musical, foi um pacote completo: cabelos compridos, roupas coloridas, linguagens próprias, relações pessoais abertas com uma igualdade jamais vista entre todas as partes envolvidas. A música de fundo tinha que ser rock, e fomos naturalmente substituindo os hits internacionais por uma produção nacional igualmente qualificada. Diante disso, as barreiras foram sendo retiradas, mas sobraram alguns radicais, sempre tem uma praga no meio [risos].


MS: O que representa esse rock rural brasileiro, para nós que já temos uma tradição de música rural muito grande?

CM: Coincidentemente, faz alguns dias que assisti a um excelente documentário, “Echo In The Canyon: uma Celebração à Música”, produzido pelo Jakob Dylan, filho do Bob Dylan. O documentário nos mostra como foi o encontro musical entre os músicos “doidões” daquela época, que definiu o country rock, que também recebeu muitas restrições por causa dos puristas. Quando Roger McGuinn usou sua Rickenbacker de 12 cordas os pilares da tradicional country music tremeram, mas o estranhamento é natural, principalmente quando o movimento vem de uma geração contestadora.

Aqui no Brasil o rock engatinhava e nossas bases eram difusas: muito do rock americano, inglês, e como era inevitável e necessário, o nosso próprio acervo musical. O que passou a ser chamado de “rural” era o caipira, o sertanejo, o folclore, beber nessas fontes era uma dádiva. O som cristalino da viola, a harmonia encorpada dos violões, as vozes cruzadas em duetos, trios, quartetos…

Uma outra situação também totalmente mundana ajudou essa simbiose. Muitos músicos e compositores mudaram-se para pequenas cidades próximas das capitais, com intenção de buscar tranquilidade, criar comunidade. As guitarras foram se incorporando ao ambiente campestre com muita beleza, presença. Creio que podemos dizer que passadas as primeiras dificuldades e desconfianças, o resultado foi o surgimento de um estilo muito bem resolvido musicalmente.

O Terço - Cezar de Mercês (baixo), Sérgio Hinds (violoncelo elétrico), Jorge Amiden (Tritarra) e Vinícius Cantuária (bateria). / Ano: 1971 - Foto: Arquivo Pessoal.

MS: Quando você trabalhou com a banda O Terço, seja cantando/tocando, seja compondo, vocês já tinham definido que queriam seguir por esse estilo de violões e violas?

CM: O Terço desde a sua origem tinha um trabalho voltado para a construção de harmonias mais trabalhadas, melodias vocalizadas e a presença de violões e/ou guitarra de 12 cordas. Dependendo da canção, tanto podia fazer o papel da viola quanto do cravo, já que não podemos esquecer do barroco, também muito presente na cultura brasileira e que influenciou bastante as composições do Amiden. Essa mescla de estilos que tanto poderia ser um rock pesado quanto uma cantiga rural surgiu naturalmente sem ideias pré-concebidas.

A primeira vez que eu vi o termo “rock rural” foi ouvindo a música “Casa no Campo” (Tavito/Zé Rodrix), o que quer dizer pra mim que não estávamos muito preocupados com os rótulos. 


MS: Você, por exemplo, tem várias músicas que poderiam ser classificadas como desse estilo. Para citar algumas, temos do Criaturas da Noite ("Queimada" e "Jogo das Pedras"); do Casa Encantada ("Flor de La Noche"; "Foi Quando eu Vi Aquela Lua Passar") e do Mudança de Tempo ("Gente do Interior"; "Pela rua")...Quais eram suas inspirações para esse tipo de som naquela época?

CM: Eu prefiro entender como “rocks rurais” as canções “Queimada”, “Jogo das Pedras”, “Foi Quando Eu Vi Aquela Lua Passar” e “Gente do Interior” porque foram compostas no violão com a intenção de buscar uma sonoridade eletroacústica típica do rock rural. Já as demais, cada uma delas tem um outro sentido. “Flor de La Noche” é uma mescla de música latina e nesse caso os violões são referência forte. A presença desses instrumentos nas canções que ouvíamos nas vozes de Mercedes Sosa, León Gieco, enfim. Já na segunda parte da canção vamos para uma levada shuffle, bem rock básico. A música “Pela Rua” é bem urbano, rock’n’roll puro.


MS: Quais bandas ou artistas daqui ou de fora do Brasil, você poderia dizer que tinha a ver com o seu som?

CM: Bom, eu sempre ouvi de tudo, desde sempre. Quando eu era moleque, era a Rádio Nacional do Rio de Janeiro que mostrava Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Silvio Caldas, Orlando Silva, Chiquinho do Acordeon, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho, enfim, um timaço de músicos, e eu gostava muito de ouvir isso, o rádio vivia ligado o dia inteiro, era uma maravilha. Depois foi a bossa nova que nos deu aquele gosto de aprender os primeiros acordes mais elaborados no violão ainda menino, e veio paralelamente os Beatles (esse foi correr para tentar o mais rápido possível tocar).

Mas como não gostar por exemplo de Cat Stevens, Donovan, Bob Dylan, Burt, Crosby, Stills, Nash & Young, Stevie Wonder, Marvin Gaye, e por aí vai. O bonito da música é que na verdade ela se complementa, os estilos se complementam. Eu gosto muito por exemplo da maneira como a música brasileira é tocada lá fora por artistas internacionais, com uma pegada meio jazz, e é muito interessante como também o jazz tá sendo retrabalhado nos EUA pelos jovens músicos de lá. A música não para.



Moisés Santana é jornalista e músico. Formado em Jornalismo, tem vários cursos na área de música. Possui alguns CDs lançados, entre eles, 'Verso Alegoria' (Lua Music/2009). Tem músicas gravadas por Gal Costa e Maria Alcina. Pesquisador do rock brasileiro dos anos 1970, explora o assunto com finalidade de um documentário.


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