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As profundezes musicais de O Pensador, novo álbum de Nelson Ângelo

sábado, 14 de dezembro de 2019

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Um dos sócios menos badalados do Clube da Esquina, movimento musical mineiro liderado por Milton Nascimento, a partir do final dos anos 60, o compositor, violonista, guitarrista e cantor Nelson  Ângelo depura sua obra de alto refino no recém lançado álbum “O pensador” (Rocinante). Aos 70 anos, a despeito de uma trajetória pessoal discreta, lançou 13 discos, e marcou a MPB com suas composições de harmonia elaborada e surpreendentes caminhos melódicos. “O disco é todo bem costurado. Cada faixa representa um remendo da minha história”, define ele. Três delas provém do disco que gravou com a então mulher, a cantautora e violonista Joyce Moreno, em 1972. Parceria com Ronaldo Bastos, “Hotel Universo” (“na terra do sol/ queima coração”) flutua entre urdiduras e declives melódicos, atravessados pelas flautas de Andrea Ernest Dias, clarineta de Cristiano Alves, e cama de cellos de Marcio Mallard. Outras desta safra inicial são a escorregadia “Ponte nova” (“a fazenda caiu na cidade/ o asfalto matou a árvore”), com destaque para o suporte rítmico de dois alicerces do Clube da Esquina, o baixista Luis Alves e o baterista Robertinho Silva, e “Tiro cruzado” (com Marcio Borges), um clássico da caligrafia oblíqua de Ângelo, regravada de Sérgio Mendes a Tom Jobim & Miúcha. “A harmonia dessa música é considerada original porque dá aquela entortada e leva o samba para o jazz com africanidade”, decupa o autor. Na revisita, em abordagem minimalista, esferas sonoras se contrapõe, emolduradas por um coral ao fundo, formado por Thiago Amud, Sylvio Fraga (co-idealizadores do disco) e a atriz e cantora Jhê Delacroix

Também engendrada com um dos fundadores do Clube da Esquina, Marcio Borges, a guimarães-rosiana “Dendágua” (“na menor vereda é onde se vai/ na mais profundeza de qualquer buscar”) tinha sido gravada apenas na França, na década de 1980, e impactou o mestre da composição e violão Guinga: “Ele não perde tempo com as alegorias da música. O que interessa é a essência, sempre genial”, elogia. Registradas inicialmente com o percussionista Naná Vasconcellos e o baixista/compositor Novelli (mais integrantes do elenco do Clube) entram duas faixas instrumentais peculiares, de títulos invertidos. “No sul do Pólo Norte”, mais etérea e esgarçada e “No norte do Pólo Sul”, eivada de contra ritmos e retomadas. Única inédita, a fragmentada “Sá Julieta”, evoca tanto a negra lavadeira que trabalhou para a família do autor quando menino, quanto a tessitura afro de sua música, herdada da divindade Clementina de Jesus.

Composta utilizando dois dedos – o indicador e o médio, porque o anelar e o mindinho do autor estavam quebrados na época - “Testamento” caiu nas graças de Milton Nascimento, que a contemplou com uma letra de rara pungência (“um dia joguem minhas cinzas/ na corrente desse rio/ e plantem meu adubo/ na semente de meu filho”). Ele a gravou no megaclássico álbum “Clube da esquina no. 2”, de 1978, que incluiu outra jóia de Nelson, “Canoa, canoa” (com Fernando Brant), ambas relidas em “O pensador”, em clima de desconstrução e atalhos estéticos inesperados. O mesmo ocorre com a cadenciada e abrasiva revisita à obra prima “Fazenda” (“água de beber/ bica no quintal/ sede de viver tudo/ e o esquecer/ era tão normal/ que o tempo parava”), faixa de abertura de outro antológico disco de Milton, “Geraes”, de 1976. O lendário sambajazzista Raul de Souza traz o trombone para o inusitado samba enredo “Reis e rainhas do maracatu”, vencedor do carnaval da mineira Três Pontas em 1980, como manda o figurino do gênero, assinada por nada menos de quatro autores: Nelson, Milton, Novelli e Fran.

Criador superlativo, fora dos padrões do consumo barato, na desfigurada e letárgica “Simples”, Nelson  Ângelo desidrata o ilusório horizonte deste conceito ao alcance da massa: “olha, a volta do rio/ virou a vida/ a água da fonte/ nossa tristeza/ o sol no horizonte/ uma ferida”.


Tárik de Souza    

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