A Palo Seco

As lições de Letieres Leite

quinta, 28 de outubro de 2021

Compartilhar:

Cada vez mais, os obituários estão por toda a parte e é triste notar que textos, obras tornam-se homenagens póstumas. Esta quarta-feira foi o dia de se despedir de Letieres Leite, maestro da Orkestra Rumpilezz e intenso pesquisador da música baiana.

A Orkestra Rumpilezz é, sem dúvida, um dos acontecimentos mais importantes para a pesquisa musical das últimas décadas no Brasil. Isto porque a iniciativa do maestro Letieres condensa, em uma proposta musical única inédita, pesquisa, ensino e uma posição política clara. Como uma cristalização de um movimento bem sucedido, ela traz uma série de lições que mostram caminhos possíveis para a nossa música.

Foto: Divulgação/FCC

A primeira é a impossibilidade completa de deixar as percussões de lado, como algo secundário. Vício antigo de músicos eruditos e populares, a posição marginal oferecida aos batuqueiros nada mais é que uma variação sobre o tema do racismo na música. A Rumpilezz toma um sentido completamente oposto: na sua formação orquestral, os percussionistas são posicionados no centro, com roupas de gala. Todas as composições, assim como os estudos melódicos e harmônicos, são orientados pela riqueza rítmica baiana, estudada a fundo.

Esse é outro traço fundamental desse trabalho. É verdade que Letieres usou ideias já consagradas, como a ênfase na corporalidade para internalizar ritmos e o conceito de clave para pensar as músicas negras. Mas, munido com essas ferramentas, mergulho em um universo muito específico. Assim, foi preciso abrir mão de recortes muito amplos: o que fez não é exatamente música negra, a música brasileira ou a música latino-americana, mas a música negra baiana calcada fortemente nos terreiros de candomblé. Só com essa especialização foi possível trabalhar com profundidade os ritmos que o maestro tanto estudou: sem dúvida, foi preciso se deter em cada toque do candomblé, em cada instrumento, virar cada um pelo avesso e experimentar intensamente para forjar uma música instrumental com vida própria.

Além disso, a Orkestra também possui um caráter singular, chave de sua força: ela não abre mão nem de uma pesquisa rigorosa, oferecendo também cursos que passam adiante a sua forma única de se pensar a música instrumental e não abre mão de ser, acima de tudo, um projeto musical – de condensar todo esse trabalho em obras.

Por último, o maestro Letieres nunca se fechou musicalmente, nem à notação musical europeia e nem a qualquer elemento musical. Aqui, a posição é simples: o de entender que para que haja esse diálogo entre tradições brancas e negras para além do racismo, é vital um reequilíbrio de forças. Assim, é imprescindível trazer a música negra para a frente, colocando as contribuições eurocentradas voltadas para ela.

Nesse sentido, Letieres foi um antropófago: digeriu as big bands estadunidenses, digeriu a notação musical europeia, digeriu as técnicas dos instrumentos de sopro e colocou tudo a serviço do universo percussivo baiano. Ao fazer isso, abriu um largo caminho para a performance e o ensino de música no Brasil. 

Talvez essa quarta-feira tenha sido tão triste por ver que há tanta trilha a se percorrer nesse caminho, e teremos que fazer, a partir de agora, sem o maestro que plantou essa semente em todos nós.


Comentários

Divulgue seu lançamento