Amigo ao Peito

As duas – ou três, ou quatro – vidas de Guedes

sexta, 22 de novembro de 2019

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Antonio Carlos Guedes foi ferramenteiro da Krupp. Durante mais de 35 anos bateu ponto, religiosamente. Funcionário exemplar, tinha, porém, uma vida dupla: acordava todos os dias às 5 da matina e estudava violão.

Mas comecemos do início, que é o melhor lugar para iniciar. Nasceu em Capivari, interior de São Paulo, filho de um padeiro seresteiro. Segundo ele, já ouvia música na barriga da mãe. O pai queria que ele tocasse sax, algum instrumento de sopro, mas o negócio do menino era violão, mesmo. Quando chegou  a uma determinada idade, foi para São Paulo estudar no Senai, virar ferramenteiro. Enquanto isso, foi estudar violão com ninguém menos que Isaias Savio. Savio foi um dos pioneiros no violão clássico no país, uruguaio radicado em São Paulo, foi professor de Luiz Bonfá, Carlos Barbosa Lima, Henrique Pinto, Paulo Bellinati, Marco Pereira, Paulo Porto Alegre, Manoel São Marcos, Toquinho... Soube escolher, pois, e foi muito bem. Tanto que quando o mestre teve um problema de saúde e fizeram um recital beneficente, em pleno Teatro Municipal de São Paulo, Guedes estava lá naquele palco. 

Formado, recebeu oferta de emprego em Jundiaí, para onde se mudou, e se casou e teve filhos. Pensava em dar aulas quando se aposentasse, mas acabou sendo chamado para lecionar numa escola, a Sociedade Pio X. Por falta de tempo durante a semana, ia lá todo sábado. Lotou. Alunos o tempo todo.

Aí o destino...

O jovem Fabio Zanon participava de um grêmio literário. Um dia, a reunião do grêmio foi lá, na Pio X. Terminada a reunião Guedes apareceu e perguntou se os rapazes não estariam interessados em ouvir um seu aluno – Marcelo Campos, que tinha acabado de ganhar o segundo lugar num concurso na capital. O menino tocou, Prelúdio 3 de Villa Lobos e uma peça de Savio, e o pequeno Zanon ficou impressionado. Já tocava um pouco, tocou para o mestre que ficou impressionado também. Guedes tocou e, claro, impressionou. Todos devidamente impressionados entre si, convidou-o para ter aulas, mas Fabio não sabia se poderia, a escola não era muito perto de casa. Guedes perguntou seu endereço e, no dia seguinte, um domingo, pela manhã, bateu-lhe à porta, sem aviso prévio. Chegou com seu violão Ramirez e quis conversar com Zanon pai; acabou dando um recital na cozinha, deixando o patriarca boquiaberto. Este disse que estava pensando em matricular o filho no Conservatório, mas Guedes aconselhou que não. Ponderou que um talento como aquele precisava de uma atenção específica, um conservatório forçosamente o limitaria. 

E assim foi feito. Era outubro, em dezembro Fabio estreava num palco. Passava os dias de aula assistindo Guedes lecionando para os outros, ali começou a se preparar para, além de concertista, ser professor, também. Guedes tinha seu próprio sistema: ler diversas músicas, escolher uma para se dedicar, sabê-la de cor e salteado: se não sai em casa, não sai no palco!

Dividiram alguns recitais Fabio, o citado Marcelo, o professor, até que numa festa de fim de ano, na Krupp, diretores alemães vieram para as festividades, e convenceram Guedes a tocar. Guedes tocou, e arrasou. Os tais diretores se impressionaram e ofereceram ao funcionário um curso na Espanha, pago por eles. De ferramenteiro? Não, de violão! 

Guedes estava numa nova fase com o instrumento. Estava tendo aulas com Henrique Pinto (que já mencionei aqui) e procurou-o para se aconselhar. Henrique disse que a Espanha seria inútil naquele momento, o melhor seria ir ao Uruguai e ter aulas com Abel Carlevaro, o grande didata do violão. Feitos os arranjos, passou um mês estudando intensivamente com o uruguaio. Ao voltar, compartilhou tudo que aprendera com os alunos. 

Deu recitais. Em Santos, gritaram “Segovia” ao fim de uma música; Fabio testemunhou gente indo olhar atrás do palco para checar se havia alguém tocando junto escondido, tamanho o efeito que Guedes causava, especialmente no seu carro chefe, o Recuerdos de la Alhambra, de Francisco Tarrega. Disse para Fabio:

-Não posso morrer sem tocar no palco uma suíte completa de Bach. Falo isso porque não quero morrer nunca!


Então, após tantos anos, acordando todos os dias às 5, se aposentou. 70 anos, hora de se descansar, certo? Não. Para se aprimorar no estudo da música, resolveu aprender inglês. Sozinho. E aprendeu, evidentemente.

Bem, aprendido o inglês, AGORA é hora de descansar, certo? Não. Zanon o convence a gravar um CD. Contava para todos o tanto que Guedes tocava, precisava provar. E Guedes, tendo se preparado por meses, gravou. Chega, né? Não...

Era – e é - vizinho do grande luthier Claudio Arone. Começou a frequentar o atelier, pergunta daqui, pergunta dali, e fez um violão. O primeiro de muitos. Agora se dá ao luxo de tocar em violões que ele mesmo fez. E apoia os pés nos banquinhos que ele também fez. Tenho dúvidas se também não fez a cadeira...

Se algum dia um brasileiro chegar à Lua, não vou me espantar se tiver sido Guedes a projetar o foguete. Ou a construí-lo. Ou a tripulá-lo. Guedes é gênio da raça!

PS: Fabio Zanon forneceu substância a esse texto. Depois que o revisou, acrescentei este PS para dizer a quem eventualmente não o conheça que é dos maiores violonistas de nossa história. E pontuando o início de sua trajetória com Guedes, hoje é professor da Royal Academy of Music, de Londres.

Se mostrasse esse parágrafo, ele me faria cortar.

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