A música de

Almir Sater – 65 anos: qual o som do Pantanal?

por Carlos Gregório dos Santos Gianelli

domingo, 21 de novembro de 2021

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Um lugar não é feito somente daquilo que o compõe visualmente, como a paisagem – seja ela natural, coberta de montanhas, planícies ou vales; seja ela alterada pelo ser humano, com casas, edifícios, lojas e fábricas. Um lugar também é feito de experiências sensoriais que podemos perceber dele, mesmo nunca tendo estado lá fisicamente. Conseguimos transportar-nos ou perceber lugares nos quais nunca estivemos provando da culinária daquele local, visualizando-o por meio de fotografias e filmagens, sentindo o perfume de alguma planta. No entanto, talvez uma das experiências mais poderosas que se possa ter para realizar esse transporte fictício seja através da sonoridade. Mesmo que esta seja inventada ou imaginada, os lugares têm sons que o compõe e a organização e a representação desses sons no formato musical são uma tarefa que poucos conseguem fazer. Luiz Gonzaga sintetizou, em sua sanfona e no formato de trio para a apresentação de suas canções, um lugar no formato da experiência sonora: o sertão nordestino. Nesse mesmo lugar, mais focado na sonoridade da sanfona em si, outro grande exemplo é Dominguinhos. Cada nota escolhida, cada acorde encaixado, cada melodia composta parece ajudar a compor, enquanto experiência sonora, o que enxergaríamos de cor, profundidade, linha do horizonte, relevo, clima, fauna e flora do nordeste brasileiro.

De maneira semelhante, Almir Sater tem contribuição fundamental na música brasileira no âmbito da possibilidade de transmutar a experiência visual do Pantanal em suas composições ao longo de seus 65 anos de vida. Seja em suas composições instrumentais, seja nas canções, o violeiro de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, foi o que melhor sintetizou, no som, o que poderíamos enxergar. As grandes planícies inundadas da região pantaneira parecem percorrer a viola de Almir Sater em suas composições instrumentais que valorizam, por exemplo, o ressoar da viola caipira. Esse mesmo ressoar entrega, como experiência sonora, a paisagem aberta e ampla que se enxergaria estando no Pantanal. É quase como se o som não tivesse uma barreira física que o limitasse, fazendo ressoar e ecoar por muito tempo nas longas planícies das fazendas. Mesmo tendo nascido na cidade, Almir Sater sempre se interessou, quando criança, pela paisagem e pelo modo de vida dos peões pantaneiros. No entanto, foi quando se mudou para o Rio de Janeiro, para cursar a faculdade de Direito, que o ressoar da viola caipira – tocado por uma dupla mineira no Largo do Machado, no centro da capital carioca – o despertou para o instrumento e para todo o universo sonoro carregado com ele. Antes dessa experiência modificadora, ouvia o som da viola nos programas irradiados logo de madrugada no início do dia: “Esse som sempre me fascinou. É um sentimento, uma tara e eu nunca soube por quê. É a minha sina”, relatou o violeiro. Vale lembrar que, no período da infância de Sater, Campo Grande não era a capital que é hoje. A cidade ainda era rodeada por muitas fazendas, sendo que o artista frequentava a de seus tios. Logo, essa percepção do garoto urbano, mas fascinado pelo modo de vida rural, será a base do que constituirá sonoramente toda a sua carreira. 

Depois da experiência no Largo do Machado, Almir Sater comprou uma viola caipira, trancou o curso de Direito e voltou para Campo Grande. Lá, criou um grupo que pesquisava música caipira e latino-americana. Em 1978, integrando a dupla Lupe e Lampião (Sater era Lupe), alcançou o quarto lugar no Festival Sertanejo da Record. Já morando em São Paulo, fez parte ainda do grupo Lírio Selvagem, juntamente a Tetê Espíndola, sua conterrânea. Nessa etapa de sua carreira, antes de conseguir gravar um disco, integrou também o grupo Vozes e Violas. 

Em 1981, Almir Sater gravou seu primeiro disco pela Continental, intitulado “Estradeiro”. Foi nos estúdios da gravadora que teve a oportunidade de conhecer mais de perto aquele que era uma de suas referências na viola caipira: Tião Carreiro. Apesar de serem de estilos diferentes, as possibilidades sonoras demonstradas por Carreiro em seus pagodes e a habilidade do ponteio da viola sempre foram uma referência no horizonte da carreira de Almir Sater. Tanto que, já neste primeiro trabalho, encerra com a faixa “No quintal de casa”, uma composição instrumental de Almir Sater com a participação de Tião Carreiro na viola. Já no segundo álbum, “Doma”, de 1982, é estabelecida a parceria com Renato Teixeira, que viria a dar bons frutos no futuro próximo. É deste trabalho a canção “Peão”, de autoria dos dois, escolhida para abrir o disco e que teve sucesso garantido ao integrar a trilha sonora da novela “Fera Radical”, da Rede Globo. Em 1985, Almir Sater volta seus olhos novamente para o Pantanal na busca por decodificar o lugar musicalmente e lança o documentário “Comitiva Esperança - Uma viagem ao interior do Pantanal”. Neste filme, de Wagner de Carvalho, o violeiro percorreu – acompanhado dos músicos Paulo Simões e Zé Gomes, do fotógrafo Raimundo Alves Filho e do jornalista e pesquisador Zuza Homem de Mello –, entre novembro de 1983 e fevereiro de 1984, as estradas de Paiaguás, Nhecolândia, Piquiri, São Lourenço e Abobral, parando em pequenas comunidades e registrando o seu modo de vida, buscando pontos em comum com a sonoridade forjada pelo violeiro. Quase que em uma operação etnomusicológica, Almir Sater visou, neste projeto, a compreender de perto como vivia a comunidade pantaneira, buscando inspiração para o que poderia resultar em algum registro musical daquele espaço e de seu modo de vida. Algumas pistas da percepção do violeiro podem ser ouvidas em seu primeiro álbum instrumental, lançado em 1985, intitulado “Instrumental”, resultado da viagem empreendida para o documentário. 

No ano seguinte, em 1986, o violeiro faz uma incursão ao pop oitentista, permeado de guitarras e teclados, no álbum “Cria”, que traz novas parcerias com Renato Teixeira nas faixas “Missões Naturais” e “Trem de Lata”. A sonoridade deste álbum difere completamente do que vinha sido construído até então na carreira do violeiro. Talvez, por isso, no trabalho seguinte, “Rasta Bonito”, gravado e lançado em 1989, Almir Sater retome a sonoridade mais rural dos trabalhos iniciais, promovendo a fusão de suas influências regionais brasileiras com a sonoridade rural dos Estados Unidos. O disco, gravado em Nashville (EUA), consolida a parceria com Renato Teixeira, sendo a dupla responsável por cinco das dez canções do disco. Além dessas, há uma parceria com compositores locais, “Homeless Souls”; uma composição instrumental, intitulada “Capim Azul” (uma possível brincadeira com o gênero bluegrass estadunidense, homenageado na composição que junta elementos violeiros e do gênero rural norte-americano); as regravações de “Tristeza do Jeca” e “Tennesse Waltz”; e, de autoria de Tavinho Moura e Márcio Borges, “Cruzada”, encerrando o álbum. Das cinco composições assinadas por Sater e Teixeira, uma delas tornar-se-ia um clássico obrigatório no repertório do violeiro – “Um Violeiro Toca” entoa o refrão: “Tudo é sertão, tudo é paixão, se o violeiro toca / A viola, o violeiro e o amor se tocam”. A canção teria sua divulgação facilitada com a estreia de Almir Sater em novelas, ao estrelar “Pantanal”, escrita por Benedito Ruy Barbosa e transmitida pela Manchete em 1990. No mesmo ano, a parceria com Renato Teixeira atingiu seu auge na composição que talvez seja o maior clássico da dupla: “Tocando em frente” arrematou o Prêmio Sharp de composição, sendo a primeira gravação feita por Maria Bethânia para o álbum “25 anos”. Neste mesmo ano, Almir Sater ainda levaria mais dois prêmios Sharp como melhor solista e composição instrumental com a música “Moura”, presente no álbum “Instrumental II”. 

Aclamado pela crítica e com a sua imagem amplamente divulgada em rede nacional com o sucesso da novela, a carreira de Almir Sater teve uma explosão no início da década de 1990, tendo o artista realizado dezenas de shows pelo Brasil. Atestando o sucesso atingido, protagonizou, logo no ano seguinte, em 1991, a novela “A História de Ana Raio e Zé Trovão”, também pela Rede Manchete. O violeiro fez o papel do misterioso peão Zé Trovão. Cinco anos depois, voltaria a atuar na novela “O Rei do Gado”, de autoria de Benedito Ruy Barbosa. Sater interpretou Pirilampo, integrante de uma dupla caipira com Sérgio Reis, que fazia o papel de Saracura. A resposta do público para a dupla “Pirilampo e Saracura” foi grande a ponto de lançarem uma trilha sonora especial, “Volume II”, somente com gravações da dupla fictícia, com participações de João Paulo e Daniel e Chrystian e Ralf com Agnaldo Rayol. Almir Sater ainda lançou, em 1997, o disco “Caminhos me levem”, antes de ficar nove anos sem lançar um álbum de estúdio. O retorno ocorreu em 2006, com o disco “7 sinais”, no qual retoma fortemente a parceria com Paulo Simões, assinando com ele sete das dez canções. No mesmo trabalho, há duas parcerias com o velho conhecido Renato Teixeira e uma composição solo. 

A discografia do violeiro do Pantanal ganhou, nos últimos anos, mais dois álbuns de estúdio, reafirmando a parceria com Teixeira. “AR”, lançado em 2015, teve, como proposta, apresentar um trabalho de inéditas, celebrando a parceria da dupla de décadas. Gravado parte no Brasil e parte em Nashville, nos Estados Unidos, o álbum conta com dez composições inéditas, cuja sonoridade vagueia entre o folk e o country, além do evidente sotaque caipira presente nas composições de dois artistas urbanos que se dedicaram a lançar seu olhar sobre o rural. A recepção do trabalho foi excelente e arrebataram o prêmio de Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras no 17º Grammy Latino. O último álbum lançado por Almir Sater, “+AR”, em 2018, continua a mesma toada premiada do trabalho anterior.

Sobre a sonoridade da viola especificamente, além da já citada influência de Tião Carreiro na lida com o instrumento, outra referência importante para Sater foi Renato Andrade. Dele, percebeu a possibilidade de afinar a viola caipira no modo “rio-abaixo”, no qual, no lugar de utilizar o bordão em ré, abaixa para dó. Na percepção de Sater, isso daria a sensação de um som mais amplo, aberto. Sendo um estudioso do instrumento, lançou mão de várias afinações, tendo, como principais, a chamada cebolão, em suas variações ré maior ou mi menor; e, como marca registrada e invenção sua, a afinação em dó maior. Diferentes afinações para um instrumento difícil de tocar e aprender (ainda mais na época em que Almir Sater começou – hoje, existe uma infinidade de cursos presenciais e on-line espalhados pelo Brasil dedicados à viola caipira) nada significariam se não fossem bem utilizadas pelo violeiro mato-grossense. 

Retomando a ideia de transposição musical da paisagem do Pantanal, todas essas afinações mencionadas estão, para o músico, assim como uma paleta de cores e uma escolha de técnica estão para um artista plástico. Determinadas afinações podem remeter ao universo caipira que estamos mais acostumados a ouvir e que está eternizado em clássicos do gênero, como Tonico e Tinoco e Pena Branca e Xavantinho – ou mesmo nas duplas surgidas na década de 1980, com destaque para Chitãozinho e Xororó. Toda essa pesquisa dedicada à sonoridade da viola empreendida por Almir Sater buscou explorar outras possibilidades do instrumento, que é utilizado desde na música de repente dos artistas do sertão nordestino até na música de fronteira do Brasil com o Paraguai. É nesse sentido que podemos perceber, na produção artística de Almir Sater, uma eterna busca pela seguinte questão: qual é o som do Pantanal? A resposta ainda não tem seu ponto final nesses 65 anos de vida do artista, restando-nos continuar nessa viagem em sua comitiva sonora tão necessária em tempos carentes de esperança.



Carlos Gregório dos Santos Gianelli: Doutor em História pelo PPGH/UDESC. Possui graduação na mesma área pela UFSC, quando desenvolveu trabalho abordando a música caipira. No mestrado na UDESC, aprofundou a temática ao ter como foco a dupla Alvarenga e Ranchinho, resultando na dissertação denominada “‘Os milionários do riso’: a performance humorística da dupla Alvarenga e Ranchinho nos programas de rádio (1936-1947)”. No doutorado, pesquisou a música brasileira produzida na Rádio Nacional nas décadas de 1930 a 1950.



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