Sobre a Canção

A última faixa do último álbum dos Racionais

quinta, 16 de novembro de 2023

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Pouco antes da virada do milênio, o rap lançou um repto à música popular brasileira. Desafiou-a a incluir em si as manifestações urbanas da periferia como fizera há décadas com as rurais, mas desta vez sem falar por elas, sem tomá-las e estilizá-las como a MPB clássica fez. Ou talvez seja mais apropriado dizer que o rap significou esta periferia desistindo de esperar por esta representação feita por outrem e tomando para si a tarefa de fazê-lo (se é que algum dia ela esperou por isso, desde a casa da Tia Ciata). Um terremoto que era tanto estético quanto ético - tanto na quebra radical da forma canção quanto na emersão do discurso do marginalizado pela sua própria voz, consubstanciado em seu exemplo máximo, o “Diário de um Detento”, de autoria de Mano Brown a partir dos escritos autobiográficos do presidiário Josemir Santos, o Jocemir. E no epicentro desta revolução, os Racionais MCs, com sua gigantesca carga de representatividade aliada a uma visão clara do que queriam: mostrar ao mundo a sua realidade, à sua maneira. 

E então 15 anos se passaram, ou mais. E em 2014 os Racionais lançam seu último álbum (até o dia em que este artigo é escrito), “Cores e Valores”. E o mundo é outro, e o rap e a música brasileira são outros também. A sigla MPB faz cada vez menos sentido ou é aplicável a um nicho cada vez mais específico; a sintaxe do rap vai sendo assimilada aos poucos dentro do formato da canção, e vice-versa: aproximações do rap com o samba e outros estilos musicais se tornam frequentes.

Mas não só: as mudanças econômicas de um Brasil que sediava Olimpíada e Copa do Mundo enquanto distribuía renda e decolava na capa da revista The Economist também implicavam em mudanças no discurso da periferia. A linha de metrô chegara no Capão Redondo, comunidade de onde os Racionais se originaram. E paralelamente a isso, o sucesso chegou para muitos rappers, com apoio de gravadoras, dinheiro, possibilidade de se mudar para bairros com mais infraestrutura... tudo parecia ir numa nova direção. Mal sabíamos nós... os Racionais também não sabiam. Ao menos racionalmente, se me permitem o trocadilho. Mas sua música talvez já soubesse.

O álbum “Cores e Valores” é um retrato acurado - não uma descrição objetiva - deste momento, e representa uma ruptura na ruptura que foi o rap, ou ao menos no que foi a obra dos Racionais até ali. E, para avaliar estas transformações, podemos partir justamente da mais marcante: Eles abandonam quase totalmente as narrativas lineares (pontuadas por máximas que se tornaram muitas vezes guias éticos para seu público) e de compreensão mais imediata (embora prenhes de segundas e terceiras possibilidades), em prol de um discurso muito mais difuso e que se distancia da espontaneidade típica do improviso. Não se trata de um aumento de elaboração, mas sim de levar esta elaboração num novo sentido.

E isto também se reflete numa enorme condensação deste discurso. Ao invés das faixas de mais de 10 minutos contando a saga pessoal de um habitante da periferia, muitas vezes sem nome, e que provocavam a identificação direta de seu público original (e o espanto e a admiração de outros e outros públicos), reflexões em sua maior parte indiretas, como que partindo do princípio de que o ouvinte, após todos estes anos, já sabe do que eles estão falando. Por outro lado, eles não estão falando das mesmas coisas, e sim dos novos dilemas que se apresentaram. Tudo isso fez com que a recepção ao álbum fosse menos entusiástica do que seria de esperar. Os Racionais se recusaram a apresentar mais do mesmo, e em vez disso dedicaram-se a um balanço sintético não apenas de sua trajetória, mas das perspectivas do rap e - por que não? do Brasil.

O pesquisador Acauam Oliveira, no excelente artigo em que aborda o álbum, defende que o álbum todo é, de algum modo, sobre a questão: o rap venceu. E agora? O discurso da periferia foi aceito (ou se impôs), o sucesso comercial veio para muitos, acompanhado de dinheiro, a possibilidade de sair da periferia, e também as contradições inerentes a esta condição, pois, como eles mesmos afirmam em “Negro Drama”, “O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela.” 

Acauam divide em quatro partes seus 32 minutos de duração: as quatro primeiras faixas são praticamente emendadas entre si, nenhuma delas com mais de um minuto e meio, com os versos “Somos o que somos / Cores e Valores” promovendo sua unificação ao ser repetido em todas como um leitmotiv que se anuncia para o álbum inteiro; a segunda parte, iniciada com “Eu te disse”, passa das elucubrações apresentadas na primeira para situações mais concretas em que conflitos éticos são decisivos. Acauam analisa: 

Nas canções dessa segunda parte, os rappers ora advertem, ora são advertidos por seus parceiros sobre aquilo que aprenderam a partir de um código de ética comum, fundamental para que a ascensão social não se converta em tragédia”.

Particularmente, o contraste entre “Eu compro" e "A escolha que eu fiz” é simbólica: na primeira, a nova possibilidade de acesso a bens de consumo não impede que o racismo se manifeste; na segunda, fica claro que esta possibilidade vem para alguns escolhidos, enquanto para outros situação mudou pouco. Como lidar com esta disparidade sendo você o beneficiado? Como lidar com isto sendo você o porta-voz dos que não ascenderam com você? Como se manter ligado a suas origens e continuar pleiteando a ascensão da coletividade e não de apenas seus expoentes? Os Racionais expõem estes impasses sem medo de com isso se exporem também - e sem a pretensão de apresentarem respostas fáceis. 

A terceira parte se inicia com “A Praça" e vai constituir uma revisão da história do grupo. Esta faixa se estrutura a partir de uma colagem de noticiários sobre a confusão em um show na Praça da Sé em 2007, em que os Racionais foram acusados de incitar e violência e a polícia cumpriu seu papel tradicional de promover a violência. Em seguida, Mano Brown e Edy Rock rememoram os momentos em que os Racionais se formavam e eles próprios tinham suas formações, entre as décadas de 1980 e 90. Particularmente, Brown acrescenta uma dose de ironia em suas lembranças, de duas formas: no próprio título/refrão “Quanto vale o show” (que na faixa é sampleado da fala do apresentador Silvio Santos), tornando por tabela os Racionais em uma espécie de calouros de programa de auditório e retratando a mercantilização da música ao mesmo tempo em que conta como chegou a ela; e a base sonora, por sua vez sampleada da trilha sonora do filme “Rocky, um lutador”, num crescente empolgante que conduziria a um final apoteótico de vencedor; e no entanto, os versos finais, num terrível contraste, são: 

Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão
Dezembro sangrento, SP, mundo cão promete
Nuvens e valas, chuvas de balas em 87

Com efeito devastador.

E finalmente, chegamos à última parte, formada por "Coração Barrabaz" e a faixa final,  "Eu te proponho". E nestas faixas, os Racionais fazem algo inédito em sua carreira, que é tratar do tema amoroso. A primeira, um processo dolorido de separação (como quase todos); a segunda, algo mais complexo.

 "Eu te proponho" é, simultaneamente, uma canção de amor e um resumo do álbum “Cores e Valores”, da dicotomia essencial do álbum: é possível ser feliz? Não se trata de uma pergunta genérica, mas aplicada às circunstâncias descritas até aqui, pessoais, coletivas, políticas, econômicas, éticas, estéticas.  "Eu te proponho" é a descrição de uma  “promessa de felicidade” - uso propositalmente a expressão escolhida por Lorenzo Mammi para se referir à Bossa-Nova e o projeto de país inerente a ela - que parece se apresentar novamente, e o temor fundado de que esta se mostre uma farsa e seja novamente frustrada.

 "Eu te proponho" é uma música fraturada. Traz duas partes bastante distintas: a primeira tem como base o sampler de Liquid Love do vibrafonista e arranjador de jazz e funk Roy Avers.


Sobre esta base, Mano desfila inúmeras citações de canções clássicas da música brasileira, guiado pelo refrão “Vamos fugir desse lugar, baby”, emprestado do reaggae de Gilberto Gil de 1984. Além deste, o título da canção traz a lembrança de “Proposta", de Roberto e Erasmo Carlos, de seu álbum de 1973 - logo adiante, Brown também citará “Além do Horizonte" , do de 1975. E mais “Na sombra de uma árvore”, de Hyldon (o verso “Larga de ser boba e vem”, que Brown termina com o verbo ver e Hyldon com a palavra comigo), de 1975; “Fullgás”, de Marina e Antônio Cícero, de 1984; duas de Cazuza: “Exagerado", de seu primeiro álbum solo em 1985, e “Pro dia nascer feliz’’, dele com Frejat, do segundo álbum do Barão Vermelho, de 1983. E ainda o verso consagrado do “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Morais “eterno enquanto dure”.

Esta profusão de menções a canções não é algo trivial - ao contrário, é bastante incomum na obra dos Racionais. Para se ter uma ideia, neste álbum, antes destas há apenas outras três citações do tipo, ambas em canções da segunda metade: Em “Quanto vale o show”, Brown cita “Esquinas”, de Djavan (mencionado na letra logo depois: “Só eu sei os desertos que eu cruzei”, e o verso “Malandro é malandro mesmo” ressoa Bezerra da Silva, também mencionado logo depois. E em Coração Barrabaz o citado é Lupicinio Rodrigues, de forma impressionante: “Esses pobres monstros” (em vez de moços), “se soubessem o que eu sei”. Diante de tudo o que se vê na última faixa, estas citações soam quase como uma preparação. Assim como pode-se dizer que todo o álbum “Cores e Valores” consiste numa preparação para, em seu encerramento, tratar da relação homem/mulher como algo positivo, como nota Acauam Oliveira:

“Pela primeira vez em um disco dos Racionais o amor entre homem e mulher aparece explicitamente como lugar de confiança, e não de traição – certamente em decorrência do avanço das conquistas das mulheres por um espaço cada vez maior na cena. A ambiguidade e a incerteza do corpo feminino, antes representado como o lugar de perigo extremo a ser controlado – o espaço inominável do desejo – aparece enquanto aposta positiva (pela primeira vez surgem versos como “Eu acredito em ti”, referindo-se a uma mulher). Pode-se dizer que esse estado de fruição que libera o sujeito do estado de vigilância constante é um dado novo no conjunto da obra dos Racionais”.

E aqui coaduna-se a retomada da temática amorosa, a mais básica da canção popular desde os trovadores medievais, com as alusões a tantas canções daquele que foi o corpo principal na nossa música popular - tanto da chamada MPB da década de 1970 quanto do repertório pop/rock dos anos 1980. Sem dúvida as escolhas de Brown se dão por rememoração da juventude, e aí temos a ligação de  "Eu te proponho" com as imediatamente anteriores do álbum. Mas, mais que tudo, todas as citações desta primeira parte têm uma temática em comum: a busca de felicidade, o idílio, a criação de uma alternativa a uma realidade excruciante, de um lugar onde seja possível um homem e uma mulher se amarem integralmente e viverem. A velha promessa de felicidade: “abre seus braços” e a “gente faz um país”.

Porém, ai, porém, idílio é cortado, o coito interrompido. Abruptamente, aos dois minutos e três segundos, a base sensual e funkeada é substituída pelo sample do muito mais soturno “Nautilus", do tecladista Bob James.


A partir daí, o tom do discurso muda, tornando-se carregado de tensão, como que desenvolvendo os versos da primeira parte “E se moiar? / E se o juri ter provas contra nós?” O que era a ida a um lugar de repouso e paz ganha contornos de uma perseguição policial “Você no toque e eu com a Glock na mão, já era” ou “Os Federais dão um zoom na 381 verá”: o mundo cão está logo ali, no encalço. Não, a conciliação não é possível. Ainda há uma citação nesta segunda parte, mas de natureza diversa: são os versos de Marvin GayeThere ain't no mountain high enough / Ain't no valley low enough” traduzidos: “Não há morro tão alto, vale tão fundo”. Não mais a relação com o corpo principal da música brasileira, mas o retorno a referências da música negra mundial.

 "Eu te proponho" é uma espécie de corolário de “Cores e Valores” ao resumir em si as contradições da ascensão e consolidação do rap, mas também das mudanças experimentadas pelo Brasil neste período, em que mudanças econômicas não impediram desigualdades e injustiças. Em que as realizações de um período (os governos do PT, Lula em particular) chegaram a dar a impressão de que o país do futuro se tornaria o país do presente. E que parece pressentir o que viria, ou perceber as inconsistências deste cenário. Já em 2018, no último comício da campanha de Fernando Haddad para presidente, Brown fez um discurso duro, que chegou a ser vaiado por antever a possibilidade de derrota - que efetivamente veio. A fala de Brown aponta a insuficiência do que foi feito e a perspectiva do desastre:

"Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que deveria ser conquistada. (...) O partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber".

Se “Cores e Valores” é o retrato de um projeto de país prestes a se esboroar mais uma vez,  "Eu te proponho" reconta esta história sinteticamente. E, por sua vez, o sampler escolhido para encerrar  a canção e o álbum faz a síntese da síntese. Falo de "Castiçal", do seu primeiro álbum, de 1973, “Apresentamos nosso Cassiano". 


Cassiano, o grande mestre do soul brasileiro, na época ainda vivo mas quase esquecido - faleceu em 2021 - é uma escolha novamente muito diversa da feitas na primeira parte da música, uma escolha do mesmo naipe da de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben, para abrir o álbum “Sobrevivendo no Inferno”. “Castiçal" é uma canção de amor prolixa e de discurso algo desconexo, sofrida mas indubitavelmente otimista. Cassiano canta os versos da primeira estrofe de sua canção: 

“Algo me diz que amanhã a coisa irá mudar
Só mesmo um grande amor nos faz ter capa”

E então é interrompido no meio de uma palavra, bruscamente, como brusco foi o corte no meio de  "Eu te proponho". A interrupção é violenta, a previsão de mudança não se concretiza. 

Este é o anticlimático e algo desconcertante fim de “Cores e Valores”. E então pode-se compreender melhor a recepção modesta que teve, haja vista a enorme expectativa quanto a seu lançamento. A mensagem do álbum é indigesta: rompe com a fórmula estética dos álbuns anteriores, sem por isso aderir claramente a outra fórmula; percebe as mudanças gigantescas pelo que o país passou, mas sem aderir cegamente a elas, antes enxergando com clareza seus limites e contradições; e finalmente, com a clarividência que as obras de arte antenadas com seu tempo têm, antecipa-se à tempestade que se avizinhava ao mesmo tempo refletindo sobre o papel do rap em tudo isso - nas palavras de Acauam, “sobre o que se perdeu e ganhou pelo caminho”. E sobre o muito que ainda havia para ganhar e perder. Em 2014, mas também hoje.




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