Colunista Convidado

A primeira e a última vez de Bebeto Alves em dois CDs

sexta, 22 de maio de 2020

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Um dos pilares da música gaúcha moderna, ao lado de Raul Elwanger, Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro e os irmãos Ramil (Vitor, Kleiton & Kledir), Bebeto Alves, em plena pandemia, lança dois discos independentes de uma só tacada. E não são quaisquer dois discos. “Salvo 79/80”, como sugere o título, resgata uma fita k7, que foi feita entre o coletivo Paralelo 30, de 1978, produzido por Juarez Fonseca e “Bebeto Alves”, a estréia solo oficial, de 1981, na CBS, produção de Carlos Alberto Sion. Ou seja, com suas 15 faixas autorais, recuperadas por um perito da masterização, Marcos Abreu, este seria o verdadeiro debute de Bebeto, desvelado apenas 40 anos depois. O outro disco que ele está lançando é ainda mais intrigante: “OhBlackBagual – Pela última vez”. Também como o nome indica, seria o título derradeiro da carreira do cantor e compositor, atualmente residindo na cidade gaúcha de São Leopoldo.

“Não estou me desfazendo de nada. Por uma conjunção de fatores resolvi fazer este último disco, que compõe uma narrativa, contextualizando várias coisas”, enuncia em vídeo. Diz não ver perspectiva de mudança no mercado. “A gente pouco faz shows, pouco toca, só no streaming. A tecnologia relacionada à música está mudando. O próprio CD não vai ter onde rodar. E não sei se as pessoas ouvem um disco inteiro nas plataformas. Eu me atraio por essa coisa táctil, de poder pegar o disco, ver a capa, letras, autores”, compara. “Quero que minha música fique soando através do tempo”, prega.

Fiel a este propósito, a dupla de álbuns oferece farto banquete estético. Espanta a coerência da caligrafia autoral de Bebeto no arco entre os dois momentos de sua trajetória, que ainda somou discos nas gravadoras Warner, Som Livre e Continental, sempre em desalinho com a torrente mercadológica. Sua cartografia estilística compreende até mesmo três discos de ambientação eletrônica (“Danço só”, 1987, “Milonga de paus”, 1990, “Paisagem”, 1993). Por sua vez, em “Salvo 79/80”, a argamassa indissolúvel de seu violão estradeiro e a voz intimista, crestada, já estão à serviço de um enclave entre regionalismo- nos negaceios de “Lugarzinho”, “Fogueirais” e universalidade - nos devaneios de “Raiar” ( “no que aqueceu/ eu quero fogo/ no que avoou, eu quero asas”), “Alquimia” (“num riacho, na clareira/ num rosto molhado à beira”) e “Ah, essa cidade” (“Não sei viver somente/ em meias palavras”).

Melismas, falsetes, lamentos, colorem, entre outras, as supra citadas “Fogueirais” e “Raiar”, que entrariam no disco de 1981, ao lado de “De um bando” e “Amarelua”, de “Notícia urgente”, de 1983, mais a inaugural “Janela” (“essa janela não dá pro mundo/ traz mágoa à luz do dia”). Ex-integrante do grupo Utopia, e posterior sucesso nacional com o musical “Tangos e tragédias”, em parceria com Hique Gomes, Nico Nicolayewski participa do disco, a bordo de teclados Wurlitzer e acordeon. Neste rascunho do primeiro trabalho, Bebeto já articula régua e compasso da postura altiva e original que manteria ao longo de décadas.

As bases de seu movimento de incorporação da milonga ao caldeirão pop/rock da MPB moderna foram lançadas em seu disco de 2004, “Blackbagualnegovéio”. Para os que não falam gauchês, vale lembrar que “bagual” significa o potro arisco, recém domado, mas que não obedece ao costeio. Este é o voluntarioso ciclo que se fecha com o lançamento atual, registrado no Tec Áudio, de Porto Alegre, no verão de 2019-2020. Bebeto divide a produção com os parceiros Marcelo Corsetti (guitarras), Rodrigo Rheinheimer (baixo) e Luke Faro (bateria) e ainda conta com participações especiais de Fernando Corona (piano) e Paulinho Fagundes (violão), também integrantes do movimento, um Clube da Esquina do Paralelo 30. O roteiro abre com uma gravação de 1979, tirada de uma fita k7, conservada em seu registro precário, de “João Madrugada” (“é Sampa, é pampa, é lampa, luziu/ é ponte é o rio, espelho fugidio”), parceria com Raul Elwanger, que encordoa o violão. Outro ás da mesma geração, o poeta uruguaianense Nei Duclós, divide a autoria de “Outras verdades” (“e que eu retome a batalha/ nessa arapuca de espelhos”), calcada no contraritmo, com Bebeto no vocal, violão, percussão e teclado.

O prefixo Black do movimento salta de “Nego de Alah”, quem sabe uma afro milonga de pulso histórico: “A pena de morte, o degredo/ o Império, a Regência/ pra te condenar/ levanta Malê/ nego de Alah/ a tua verdade/ me faz acreditar”. Nas idas e voltas da milonga tangueada, “Flor de plástico” desidrata cenários: “as luzes no final da tarde no pampa/ menino, tudo é rápido demais”. “Rosa girassol” baila num cadafalso: “E perfuma/ envenena os poros/ promete, insinua/ nas horas tardias/ sul americanas”. A onomatopaica “Ibibiuhuhu” (“negobléqui cambona/ qual gato, gateia-se/ abre-se numa acordeona”) embute o brado sapucay (pinçado na internet) dos desafios pampeiros.  Composição do carioca da nova safra da Lapa, Rodrigo Maranhão, “Milonga”(“nem todo toco ecoa/ nem todo eco toca/ nem toda toca é casa”) atesta a nacionalização do gênero professado por Bebeto. Ele evoca a expressão bangalafumenga, que intitula o bloco carnavalesco de Maranhão, no irresistível refrão holográfico de “Brasileirinha”: “uma milonga brasileira tem/ tem bangalafumenga/ arrasta pé, meu bem/ tem molejo tem cintura/ poesia tem/ cajuína, Teresina/ tacacá, Belém”. Por sua fluência cristalina seria um hit, não estivessem hoje os meios de massa surdos ao que não é banal ou diluído.

Pior para eles. Bebeto Alves completa sua volta olímpica com sutileza e sabedoria em “Pela última vez”: “Venho pro futuro porque assim me sou/ eu não sou daqui, aqui só estou/ sou de lugar nenhum e assim me vou”.

Tárik de Souza


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