Resenha de Samba

A despedida do Velho Bamba Hélio Turco da Mangueira

sexta, 09 de junho de 2023

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Partiu neste dia 8 de junho para o reino da glória o sambista Hélio Turco, grande compositor de Samba-Enredo da Escola Estação Primeira, de Mangueira (RJ). Homem que travou inúmeras batalhas ao longo de sua vida, Hélio estava internado desde terça-feira (6) na UPA do Engenho Novo, Zona Norte do Rio, tratando de uma infecção e, dessa vez, não resistiu.De acordo com seus familiares, a causa da morte foi septicemia.


Hélio Turco em sua mocidade /Acervo da família

A Escola de Samba Mangueira é hoje patrimônio cultural do Brasil, muito em razão da atuação de um célebre fundador: Cartola. O que pouca gente sabe, entretanto, é que o consagrado sambista deixou a Escola em 1951, aborrecido por questões políticas internas. Como a Mangueira sobreviveu nos anos que se sucederam sem a sua maior estrela?

Neste cenário, outros sambistas irromperam para levar adiante a garbosa história da verde e rosa, sendo o mais improvável deles Hélio Rodrigues Neves (15/11/1935 - 08/06/2023), o popular Hélio Turco, branco dos olhos verdes que não sabia sambar, tocar e nem compor.

Em reunião realizada na Ala dos Compositores da agremiação no ano de 1956, Cartola e Carlos Cachaça foram convidados para retomarem os seus postos de liderança, convite que foi prontamente recusado. Morador do bairro de Mangueira, Hélio Turco acompanhava as decisões da janela, do lado de fora, quando, ao questionarem quem seria o secretário da Ala, Pelado, compositor da nova safra da Estação Primeira exclamou: “Bota o Hélio Turco, ele é compositor”.

O que parecia uma peça de Pelado, já que Hélio nunca sequer havia pensado em ser compositor, se transformou numa espécie de chamado para o Samba. Foi assim que o descendente de sírio-libanês, dono de armarinho na Rua Francisco Xavier e artesão de pipas e balões se tornou sambista.

Formado em “Ciências ocultas e letras apagadas”, como gostava de brincar, se transformou ao longo dos anos em um dos mais talentosos letristas de seu meio e o maior vencedor de disputas de Sambas-Enredo de todos os tempos na Mangueira. A primeira obra composta pelo sambista debutante foi “Rugas marcantes”, em parceria com o seu mentor, Pelado, no ano de 1957:

“Vejo os meus cabelos brancos já bem cintilantes / E rugas perfurando a face eu sinto marcante”.


Um contrassenso completo, já que Hélio contava, então, com pouco mais de 20 anos, contudo demonstrava o poder de inspiração do estreante compositor em abordar um tema que não representava necessariamente a sua realidade.

Logo em 1959, vence pela primeira vez uma disputa de Samba-Enredo pela Mangueira: “O Brasil Através dos Tempos”, em parceria com Pelado e Cícero, trio que deixaria a sua marca nos anais do Samba. A Estação Primeira ficou em 4º lugar naquele ano.

Hélio não é da época da construção da primeira sede da Mangueira, como Cartola, que colocou muito tijolo na antiga edificação nos idos de 1930. Todavia, anos depois Hélio Turco tirou muita lama em frente à essa mesma sede, no Buraco Quente, no Morro de Mangueira, para que a Escola pudesse ensaiar.

Em 1960, Cartola entrou na disputa de Samba-Enredo pela primeira vez após a sua saída, em 1951. O enredo proposto pelo próprio Cartola foi “Glória ao Samba” e tratava das diferentes épocas de transformação pelas quais o gênero vinha atravessando.

Com melodia cadenciada, Cartola compôs em parceria com Carlos Cachaça o samba que posteriormente ficou conhecido como “Tempos Idos”. Entretanto, o experiente sambista não esperava que o jovem trio Hélio Turco, Pelado e Cícero compusesse um verdadeiro épico e superasse a sua obra, na Escola que ele mesmo havia fundado. Eis a poética letra do samba vencedor:

“Samba, melodia divina / Tu és mais empolgante / Quando vens da colina / Samba, original és verdadeiro / Orgulho do folclore brasileiro / O teu limiar de vitória / Foi na Praça Onze de outrora”

Neste ano a Mangueira foi campeã, Cartola nunca mais concorreu a um Samba-Enredo e Hélio Turco entrou para o primeiro time de compositores do gênero.


Hélio Turco em pleno desfile de sua amada Verde e Rosa / Acervo Centro de Memória da Mangueira

A década de 1960 foi a década de ouro do Samba-Enredo, com clássicos até hoje imortais, como “Aquarela Brasileira” (64) e “Heróis da Liberdade” (69), do genial Silas de Oliveira, da Escola de Samba Império Serrano (RJ). Foi justamente com Silas que Hélio buscava aprender, sempre que o sambista o visitava em seu armarinho, nutrindo amizade que enriqueceria a música popular brasileira.

No decorrer de 1960, apesar de Silas ter desfilado 6 Carnavais seguidos com sambas de sua autoria, não conquistou nenhum título. Já Hélio Turco, seu humilde aprendiz, durante os anos 60 desfilou 8 carnavais com sambas que havia assinado, conquistando 3 campeonatos para a verde e rosa.


Os bambas Manoel Ferreira, Ari do Cavaco, Noel Rosa de Oliveira, Geninho, Hélio Turco,Silas de Oliveira e Darcy da Mangueira / Walter Firmo, 1969


Porém, essa série vitoriosa não tornou Hélio Turco um cego ambicioso e foi conquistada com muita honestidade, o que pode ser ilustrado com duas passagens de sua trajetória.

No ano de 1963, Hélio Turco teve a oportunidade de gravar uma composição de sua autoria pelo maior intérprete do Samba de todos os tempos: Jamelão. O samba se intitulava “Revoltado” e, para lançá-lo, Jamelão exigiu a Hélio que o seu nome constasse como um dos autores. Resultado: Hélio se revoltou com a proposta picareta do legendário mangueirense e o samba encontra-se inédito até os dias atuais:


“Caminhando eternamente, caminhando / Mas a revolta em meu peito / Vai me torturando”.

Noutra feita, em 1965, houve uma disputa de Samba-Enredo histórica na sede da Mangueira. Para escolher o samba foi formado um júri altamente qualificado composto por nomes como o do sambista pioneiro Heitor dos Prazeres, o respeitadíssimo etnógrafo Edison Carneiro e o jornalista especializado em música popular, Sérgio Cabral. Essa comissão diferenciada elegeu o samba de Hélio Turco, Pelado e Comprido como o vencedor para o enredo “Rio Através dos Séculos”.

Era uma época em que os compositores de Samba-Enredo não ganhavam qualquer quantia financeira, compunham por amor à Escola. Contudo, a vitória do trio foi o suficiente para que a discórdia se instaurasse no seio da sede da Estação Primeira de Mangueira, com direito a ameaças de tiro.

Hélio Turco, então, tomou nobre atitude, talvez sem precedentes e sem procedentes na história do Samba: “Vocês dizem que são mangueirenses, mas eu posso dar uma prova de que sou tão mangueirense quanto vocês. Embora meu samba tenha vencido por decisão da comissão julgadora, estou disposto a fazer qualquer coisa pela pacificação de nossa escola. Dou o meu samba como derrotado”.

Inclusive, após esse episódio, em 1967 Hélio Turco teve de usar de artifício e omitir seu nome em “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, pois percebeu que estava sendo perseguido em sua Escola e, caso entrasse oficialmente na parceria, o samba seria cortado. A estratégia deu certo, seu samba foi pra avenida, mas ainda hoje seu nome não consta entre os autores.

Na década de 1970, como tesoureiro da Ala dos Compositores da Mangueira, exigiu prestação de contas de seus pares. Teve como resposta um ingrato gancho de mais de 10 anos sem poder compor para a sua Escola de coração.

O compositor foi autor também de sambas de terreiro, a maior parte deles, entretanto, ainda permanece inédita, gravada apenas na memória e no espírito de velhos mangueirenses. Como as pastoras da Velha Guarda da Mangueira, Guezinha, filha da grande Dona Neuma e neta de Saturnino, primeiro Presidente da Escola, além de Sônia da Pedra, filha do compositor Geraldo da Pedra e irmã da finada pastora Zenith. Entre seus sambas de terreiro gravados se destacam “Decaída” e “Velho Bamba”. Já com relação aos inéditos, ainda hoje são lembrados “Adeus, Velha Mangueira”, “Rugas Marcantes”, “Boemia”, “Grande Cena” e “Quero Matar Essa Saudade”.

Hélio Turco é o compositor que mais vezes teve um samba de sua autoria desfilado no Carnaval pela Escola de Samba Mangueira. Foram 16 Sambas-Enredo colocados na avenida e 5 títulos de campeão, todos pela Estação Primeira:

DÉCADA 1950

1) 1959 - O Brasil através dos tempos (C/Jorge Pelado e Cícero, 4º)
2) 1960 - Glória ao Samba ou Carnaval de Todos os Tempos (C/ Pelado e Cícero, Campeã)

DÉCADA 1960

3) 1961 - Reminiscências do Rio Antigo (C/ Pelado e Cícero, Campeã)
4) 1963 - Exaltação à Bahia (C/Cícero e Pelado, 2º)
5) 1964 - Histórias de um Preto Velho (C/ Pelado e Comprido, 3º)
6) 1965 - Rio através dos séculos (C/ Pelado e Comprido, 4º)
7) 1967 - O Mundo Encantado de Monteiro Lobato (C/ Darci, Batista da Mangueira e Luiz, Campeã)
8) 1968 - Samba, Festa de um Povo (C/ Darci, Batista e Dico, Campeã)
9) 1969 - Mercadores e Suas Tradições (C/ Darci e Jurandir, 2º)

DÉCADA 1970

10) 1971 - Os Modernos Bandeirantes (C/ Darcy da Mangueira e Jurandir, 4º)

DÉCADA 1980

11) 1984 - Yes, Nós Temos Braguinha (C/ Jurandir, Comprido, Arroz e Jajá, Campeã)
12) 1985 - Abram Alas Que eu Quero Passar - Chiquinha Gonzaga (C/ Jurandir e Darci, 9º)
13) 1988 - 100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão? (C/ Jurandir e Alvinho, 2º)
14) 1990 - E deu a Louca no Barroco (C/ Jurandir e Alvinho, 8º)

DÉCADA 1990

15) 1991 - As Três Rendeiras do Universo (C/ Jurandir e Alvinho, 12º)
16) 1992 - Se Todos Fossem Iguais a Você -Tom Jobim (C/ Jurandir e Alvinho, 6º)

Mesmo sendo o grande campeão da Estação Primeira, Hélio nunca se colocou à frente de seus feitos: “Ganhei sim, mas sempre tive os melhores parceiros. Veja só que time de primeira linha: Cícero, Pelado, Comprido, Darci, Jurandir e Alvinho. Poetas pra ninguém botar defeito”.

Entretanto, Hélio Turco confessava: “O samba-enredo me deu mais mágoas do que alegrias”. Este era o paradoxo experienciado pelo consagrado sambista, isto é, ter vivido entre as glórias do passado e o esquecimento de sua Escola, que desde 1993 passou a rejeitar os seus sambas.

Em seus últimos anos de vida, Hélio Turco ganhou um fio de esperança a mais para viver na companhia da paz. No ano de 2019, convidado pelo agrupamento Glória ao Samba, de São Paulo, subiu pela primeira vez em um palco para interpretar um samba de sua autoria, no espetáculo Glória ao Samba canta Mangueira - A Semente do Samba e Seus Frutos no Teatro Rival. Hélio Turco estava bastante animado e participou ativamente de todas as etapas dessa apresentação.

Nos recebeu com grande entusiasmo durante a pesquisa de campo que eu, Rafael Lo Ré, Tuco Pellegrino, Noeli Pellegrino e Diego Ribeiro fizemos no Rio de Janeiro em busca de sambas e histórias que pudessem recontar fidedignamente a consagrada trajetória da Mangueira. Em sua casa na Rua Visconde de Niterói, em Mangueira, o mestre nos ensinou sambas inéditos de sua autoria que foram entoados no terreiro da Estação Primeira entre fins de 1950 e os primórdios da década de 1960, além de nos apresentar narrativas de sua rica vivência no mundo do samba.

Dois ônibus partiram numa noite de sexta de São Paulo rumo ao Rio de Janeiro com integrantes do Glória e apaixonados pelo Samba para o dia da apresentação. Logo ao chegar no Rio, houve ensaio pela manhã de sábado em um estúdio nas Laranjeiras. E lá estava Hélio Turco, marcando presença e contribuindo com os componentes do Glória ao Samba, ensinando de perto segredos de execução de seus sambas.



Hélio Turco no ensaio com a rapaziada do Glória ao Samba em momento de descontração /Acervo Glória ao Samba

No palco do Teatro Rival, Hélio Turco foi um show à parte, interagiu com a plateia, brincou com os integrantes do Glória, fez um desabafo histórico sobre os rumos das Escolas de Samba atuais e até cantou à capela o samba “Velho Bamba”, feito em decorrência da morte de seu grande amigo e compositor, Jorge Pelado.

Hélio Turco foi ovacionado por uma plateia de pessoas formada por sambistas de coletivos como Samba de Terreiro de Mauá, Terra Brasileira e Produto do Morro. Familiares de grandes sambistas do passado como Paulo, filho de Zé Ramos da Mangueira, Elenice, filha de Silas de Oliveira e Geisa, filha de Zé Keti. Além dos historiadores de SaAlém dos historiadores de Samba Luís Fernando Vieira (in memoriam), Marília Trindade Barboza, Onésio Meirelles, Rachel Valença e Carlos Didier. O grande crítico musical Tárik de Souza também marcou presença e documentou a apresentação em matéria para o IMMUB.

Neste dia, Hélio Turco foi intensamente aplaudido pelas pessoas presentes no Teatro Rival, que se encontrava lotado. O derradeiro samba executado pelo Glória naquela noite foi sugerido por Hélio Turco: “Exaltação a Mangueira” (Enéas Brites da Silva). O velho sambista acertou em cheio e a plateia, de pé, empunhando bandeirinhas da Mangueira confeccionadas pelas mãos do próprio Hélio Turco, cantava apoteoticamente o hino de Mangueira, num verdadeiro mar trêmulo verde e rosa de flâmulas em correnteza.


Hélio Turco e Glória ao Samba no Teatro Rival, em junho de 2019 / André Siqueira

No dia seguinte, na despedida do Glória ao Samba do Rio de Janeiro naquela breve e intensa estada, o agrupamento foi tocar no Bar do Bigode, no Centro, em roda informal. E lá estava Hélio Turco novamente, na roda, participando, sendo reconhecido e homenageado, sempre acompanhado de sua cuidadosa nora Paula, que carinhosamente o tratava por “Vovô”.

Em 2021, Hélio Turco foi empossado como novo Presidente de Honra da Mangueira, sucedendo Nelson Sargento em razão de sua passagem. Em 2022 foi retratado no ensaio “Hélio Turco - Um poeta entre versos, pipas e balões”, assinado por Gustavo Gasparani, no livro “Três Poetas do samba-Enredo - Compositores que Fizeram História no Carnaval”.

Um dos maiores historiadores da Mangueira nos dias atuais, o mangueirense de berço Onésio Meirelles, irmão do compositor Ivan Meirelles (contemporâneo de Hélio), autor, entre outros livros, de “Mangueira no Tempo da Minha Avó” (2010) e “Minha Mangueira” (2021), dimensiona a importância de Hélio Turco: “Um grande artista, um grande compositor. Talvez ele não tenha tido o reconhecimento que merecia, principalmente na Mangueira. Mas vai ficar a sua obra aí, a gente vai guardar o legado dele com muito carinho, com muito amor, assim como outros grandes nomes do Samba”.

No primeiro Carnaval das Escolas de Samba após a pandemia, no presente ano, Hélio Turco desfilou fidalgamente como Presidente de Honra na sua querida e amada Estação Primeira. Era a tão sonhada e desejada reconciliação entre Hélio Turco e sua Escola de coração, numa história que envolve muita injustiça e mágoas, mas também muitas glórias e vivências únicas que hoje já fazem parte da História do Samba. Seu amor incondicional a Estação Primeira está expresso em versos para a posteridade, no belo Samba “Adeus, Velha Mangueira”, ainda inédito fonograficamente, mas ensinado ao Glória ao Samba, que o executou em 2019 no Rival:

Adeus, Mangueira
Eis a minha despedida
Meu viver é inconstante
Partirei pra bem distante
Levarei a saudade
Em meu peito sangrando
Ficarei longe de ti
Eu não sei
Grande Deus
Até quando
Adeus… velha Mangueira
Adeus!

II

Deixo no terreiro da escola
As minhas rimas
Que a ti eu ofertei
As tuas glórias
Tão meritórias
Em outras terras
Cantarei
Soluçante são os versos meus
Adeus, Mangueira, Adeus!


                      Vá em paz, Velho Bamba!



“Adeus, velha Mangueira, adeus” / André Siqueira

FONTES

- Informações orais colhidas com Hélio Turco em diversas ocasiões entre 2019 e 2020.
- Música Popular - Declaração de voto, de Sérgio Cabral, jornal Diário Carioca, 7/1/1965.
- O Campeoníssimo Hélio Turco, jornal A Voz do Morro, agosto de 1986.
- Hélio Turco em sua 16º vez alcança o universo, revista Mangueira, carnaval 1991.
- Do Country Club à Mangueira, de Roberto Paulino (2003).
- Mangueira - Estação Primeira do Samba, de Eduardo G. Flórido (2005).
- Cartola - Os Tempos Idos, de Marília Trindade Barboza e Arthur L. Oliveira Filho (1983).
- Cartola - Todo Tempo que Eu Viver, de Roberto Moura (1988).

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