Colunista Convidado

A conexão lusa une Vinicius e Zeca Afonso com Mônica Salmaso e José Pedro Gil

terça, 04 de janeiro de 2022

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“Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal/
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”

Ao longo dos anos, desde que aflorou na trilha da peça “Calabar - o elogio da traição”, de 1973, do carioca Chico Buarque e do moçambicano Ruy Guerra, este refrão de “Fado tropical” já serviu de carapuça a ambas as nações, envoltas em ditaduras, a militar brasileira e a lusa desde o caudilho Salazar. Nos últimos tempos, o espelho se partiu do nosso lado, e tornar-se português virou sonho de redenção de milhares de brasileiros imigrantes. Um dos construtores da ponte cultural entre os dois países, ainda na década de 60, foi o inescapável descendente Marcus Vinicius da Cruz e Melo Moraes (1913-1980) num célebre registro musical na casa da soberana do fado tradicional Amália Rodrigues. A obra do poeta, compositor e ex-diplomata, cassado pela ditadura militar, agora é associada à do grande compositor português, José Afonso (1929-1987), autor do clássico libertário “Grandola, Vila Morena”, que serviu de hino a chamada Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura lusa, em 1974. Também perseguido pelo governo salazarista, Zeca Afonso passou parte da carreira na clandestinidade, com o nome escrito ao contrário nos jornais (Esoj Osnofa) para driblar a censura da PIDE. 

Quem os une no histórico disco “Estrada branca” (Biscoito Fino) são as vozes virtuosas da cantora paulistana Mônica Salmaso e do cantor lusitano José Pedro Gil (conhecido por projetos com Carminho, Maria João, Pedro Jóia e Ney Matogrosso), acompanhados por craques instrumentais dos dois lados do oceano. Nelson Ayres (piano, acordeon), Teco Cardoso (flautas) e Emanuel de Andrade (piano) dividem a produção musical, que arregimenta ainda Marcelo Caldeira, Lyza Valdman (violinos), Sergio Sousa (viola) e Tatiana Leonor (violoncelo). No cerne do encontro, a participação de Mônica no disco “Outro tempo, José Afonso”, que José Pedro Gil lançou, em 2015. Os dois decidiram convidar o escritor português Carlos Tê para a dramaturgia do espetáculo, o que abriu caminho para que as obras de José Afonso e Vinicius de Moraes se cruzassem. Este repertório foi apresentando em shows no Porto, Sintra e Lisboa, em Portugal, em 2017. Dois anos depois saiu lá o disco, que agora desembarca aqui. 

Carlos Tê compara os dois autores:

“Vinicius encabeça a década dourada no Brasil, é observador e fauno de sua luxuriante diversidade. José Afonso cresce com a litania saudosa de Coimbra, faz-se andarilho das ruínas do império, trafica cadências de Angola e Moçambique, põe a canção ao serviço do desejo libertário, é o punho lírico que convida a história a mover-se”.

Dele é a cortante “Os índios da meia praia”: “Mandadores de alta finança/ fazem tudo andar pra trás/ dizem que o mundo só anda/ tendo a frente um capataz”. José Pedro Gil conduz altissonante, e ganha a adesão de Mônica. É ela quem rebate no xaxado sarcástico “Pau de arara”, de Vinicius e Carlos Lyra, extraído da peça da dupla “Pobre menina rica”, que se tornou sucesso de massa na interpretação do ator e humorista Ary Toledo, nos anos 60. Conta a história de um pobre cearense que ganhava a vida remunerado pelos passantes que o viam devorando giletes, até que “uma dona lá no Leblon” encantou-se com o retirante “comendo caco de ‘vrido”.

Mas na atmosfera do encontro predomina o lirismo de ambas as partes. De Zeca Afonso, o valseado acalanto “Canção de embalar” (“dorme meu menino, a estrela da alva/ já a procurei a não a vi/ se ela não vier de madrugada/ outra que eu souber será pra ti”) à rendilhada “As pombas” (“pombas brancas que voam altas/ riscando as sombras/ das nuvens largas”) e a expressionista “Era um redondo vocábulo” (“nos degraus de Laura/ a tinta caía no móvel vazio/ convocando farpas”). De Vinicius, em parcerias com Tom Jobim, ressoam as camerísticas “Derradeira primavera”, “Estrada branca” e “Chora coração”. José Pedro Gil e Mônica Salmaso revezam-se nas interpretações dos conterrâneos, mas também promovem acendrados diálogos e duetos. O secular vate luso Luiz Vaz de Camões (1524-1580) é parceiro póstumo de Zeca Afonso em “Endechas a Bárbara escrava” (“aquela cativa/ que me tem cativo/ porque nela vivo/ já não quer que viva”). Pianeiro pioneiro, erudito popular, o carioca Ernesto Nazareth (1863-1934) foi letrado por Vinicius no megaclássico do choro, “Odeon” (“ai meu chorinho/ eu só queria/ transformar a realidade em poesia”). Há ainda no roteiro, a intensa “Balada de outono” (“rios que vão dar ao mar/ deixem meus olhos secar”), de Zeca Afonso, e a sempre surpreendente e cálida “Valsinha” cuja letra de Chico Buarque (“e dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou/ e foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou”) reveste a rodopiante melodia do poeta Vinicius de Moraes, autor dos célebres versos, “a vida é a arte do encontro/ embora haja tanto desencontro pela vida”. 

Carlos Tê sacramenta  a conexão: “A uni-los, a madeira das palavras e dos violões, a história desalfadegando a sua bagagem de ritmos, vozes, melodias, danças, lágrimas, a transumância dos povos”.


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