Música

A cartografia viajante de Arícia Mess em 'Versos do mundo'

quarta, 05 de maio de 2021

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Artista singular e inovadora, a niteroiense Arícia Mess despontou em meados dos 90, num núcleo musical multiforme, a partir do Rio, inicialmente denominado retropicalismo, que revelaria ainda Pedro Luís (e o grupo Boato), Suely Mesquita, Luis Capucho, Mathilda Kóvak, Fred Martins e Rodrigo Campelo. Seu trajeto musical passou pelo álbum e vídeo do "Bloco Rap Rio", ao lado de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett, Planet Hemp e B Negão, em 1997. Seu primeiro solo, “Cabeça coração” sairia em 2001, produzido por ela, Carlos Trilha e Fernando Morello, com sucessos como “O homem dos olhos de raio X” (Lenine) e “Superlegal”, anteriormente lançado na Europa como single pelo selo londrino Far Out. Uma década depois, viria “Onde mora o segredo”, também produzido por Trilha e a intérprete, com destaque para a iconoclasta “Black is beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Mais uma década, e ela ressurge, neste 2021, com seu álbum mais globalizado, “Versos do mundo”, composto e gravado entre Lisboa, Londres, Salvador e São Paulo, lançado pelo selo Korokoro (Alemanha/Inglaterra).

O projeto também está associado a três anos de viagens pela Europa apresentando-se em concertos e gravando entrevistas para programas em Paris, Berlim, Lisboa e Londres ao lado de artistas como Nina Miranda, do Smoke City, e o DJ Maseo, do De La Soul. A partir de 2016, Arícia ainda comandou e produziu o programa semanal “Flower Power”, na rádio Vozes na Internet, dirigida pela jornalista Patrícia Palumbo. Agora independente, com o título de “Música do Brasil e do mundo”, o programa acaba de ganhar um prêmio do Itaú Cultural. Em 2020, Arícia lançou o single “Viralata humana” (parceria com Suely Mesquita), com oito capas diferentes criadas por suas parceiras do Bora Girls, um grupo de mulheres das artes visuais com quem ela programou a video instalação “Show for no one”, para a Blaze Gallery, de Notting Hill, Londres. “A performance expressa o tempo em que vivemos, sua melancolia, os teatros e casas de shows vazias, a impossibilidade de nos encontrarmos, o medo do desconhecido”, descreve.

E o espírito viajante e aliciador de suas recentes andanças colore o expandido “Versos do mundo”. “A viagem me trouxe encontros, desencontros, ganhos, perdas, ilusões, desilusões, alegrias, novos amigos, novos parceiros e um novo olhar sobre meu caminho com a arte, muito mais livre e profundo”, define ela. “Pude vive-la, senti-la experimentá-la no meu dia a dia. Em algum momento, algo começou a fluir e tomou rumo: quando me perdi, me achei”, acredita.

Um desses encontros foi com a cantora e compositora paraense Dona Onete, “que em Londres me provocou a compor com ela – a presença do anjo me disse: vai Arícia! É pra ti!”, exulta. Ambas dividem autoria e vocais do acendrado manifesto “Batuque é reza forte” (“Desperta meu samba/ teu povo tá me chamando/ nunca mais vi ninguém sambando/ do jeito que a gente sambava”), encordoado pelo violão de Aleh Ferreira, atabaque, surdo, guiro e tamborim de Pupilo (Nação Zumbi) e mixagem de Carlos Trilha. A música foi lançada em antologia da Putumayo Records no ano passado. Ao lado do paraibano Chico Cesar (“profundo, de raiz, todo o nordeste canta através dele”) em agudos melismas, ela singra a parceria da dupla, farpada na afrobeat A fome e o canibalismo”. “Se pensa que é mais fácil/ acabar o mundo/ que o capitalismo/ a força do que é mais forte/ nos dará o norte/ a terra, o fogo, o ar, o bicho”, lanceta a letra, engolfada por synth bass, teclados e guitarra de João Deogracias, teclados de André Lima, atabaques de Samba Sam, bateria de Loco Sosa e mixagem do americano Victor Rice.

Eles também estão no agalopado “Sem medo do mar”, composição da solista, com direito a sample do poeta baiano Waly Salomão e uma citação de “A vida é sonho”, do espanhol Pedro Calderon de la Barca (1600-1681). E ainda, em mais uma faixa gravada no estúdio Toca de Tatu, em São Paulo, na litania afiada de “Há quem chame” (dela com Carlos Pontual), sobre poema de Natalia Barros, do livro “Caligrafias”: “Há quem chame calor/ há quem chame paixão/ há quem chame fogo/ quem chame desejo/ quem chame jogo”. Gravada em Lisboa, a soturna “Noite de temporal”, uma das estupendas canções praieiras do baiano-mór Dorival Caymmi, de 1940, ganha nova dimensão, a bordo do semovente violão de Gabriel Musak, também responsável pela programação. Há ainda congas de Duvale (Afrogame), além de densas tessituras vocais de Aricia.

Entre Salvador e São Paulo foi registrado “Meu bem bem” (“maravilhosa dançarina/ ela tem sua própria gira”), de Arícia, em parceria com o programador da faixa o DJ Lucio k, de groove irresistível e recorrente. Num clima intimista com inclinação bossa pop, a bilíngüe e autoral “Lovely” (“lovely, leve-me/ catch me, solte-me/ lovely, touch me/ salve-me, set me free”) desliza mansa e minimalista. Igualmente registrada em Lisboa, fecha o cortejo a intensa e ralentada “Versos do mundo” (parceria com Ricardo Dias Gomes, da Banda C, de Caetano Veloso) sobre poema de Marcos P. Cremasco, do livro “Canções de medo e coragem”: “Aceita o hino/ o encanto de ser só destino”.

Tárik de Souza

Foto: Marcella Haddad

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