85 anos sem Noel Rosa
por Gilberto Inácio Gonçalves
Meu primeiro contato com a música de Noel Rosa aconteceu na infância, ouvindo os discos que havia em minha casa da Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Francisco Alves. Mas era uma criança e não iria prestar atenção a essas músicas de velhos... Meus gostos musicais eram outros. Maria Bethânia em 1965 lança um disco só com músicas de Noel. E aqui e ali, ouvia em shows e discos algumas músicas de Noel.
Nessa época ainda não tinha aparecido nenhuma música que me pegasse por completo. Isso foi acontecer em 1974, com o lançamento de Sinal Fechado, de Chico Buarque. É o disco em que ele canta Filosofia: “O mundo me condena, e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome, deixando de saber, se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome”. A partir daí, Noel Rosa passou a fazer parte dos compositores que me interessavam.
Noel de Medeiros Rosa nasceu na Vila Isabel, Rio de Janeiro, em 11.12.1910 e faleceu no mesmo local em 04.05.1937. Tinha 26 anos. Teve uma produção bem grande para o pouco tempo de vida. Mais de 200 composições gravadas. Fora as que se perderam ou não chegaram ao disco. Suas primeiras gravações são uma toada e uma embolada, canções compostas um ano antes sob a influência dos Turunas da Mauricéia que causaram furor no Rio de Janeiro e gravadas por ele na Parlophon em agosto de 1930. O famoso Com que Roupa só viria a aparecer no mês seguinte (setembro 1930). E fez tanto sucesso que foi regravada por I. G. Loyola e Noel em janeiro de 1931. E fez a banca no carnaval daquele ano. Daí em diante, foi um compositor prolífico e eclético, sambista que uniu o morro à cidade. Sua importância era tanta como compositor que Francisco Alves e Mário Reis pediam músicas sobre determinados temas a ele. Francisco Alves chegou a monopolizar suas composições por um tempo. Estamos Esperando (1932), é uma composição dele e de Cartola que Francisco Alves gravou com Mário Reis e é uma crítica ao próprio Francisco Alves. Já Vitória (1932), outra crítica a Francisco Alves, foi gravada por Silvio Caldas, mas Francisco Alves fez questão de participar da gravação no coro onde se destaca tanto quanto o cantor principal. Noel Rosa, só para citar, foi gravado por Carmen Miranda (que ele não gostava), Gastão Formenti Lamartine Babo, Francisco Alves, Mário Reis, Jonjoca e Castro Barbosa, Ismael Silva, João Petra de Barros, Aurora Miranda, Silvio Caldas, Marília Batista e Bando de Tangarás, do qual era integrante, ao lado de Almirante, Henrique Brito, Alvinho e João de Barro. Almirante, anos depois iria escrever sua primeira biografia. Em 1934, ele conhece Aracy de Almeida que seria sua principal intérprete até o seu precoce falecimento. Noel falece em 1937, com 26 anos de idade, e cai no esquecimento. Teve algumas gravações, mas muito poucas em relação ao que era gravado quando vivo.
E seria Aracy de Almeida a responsável por trazer Noel de volta a vida. Em 1951, a Dama do Encantado grava 3 discos 78 rpm com produção esmerada, capa de Di Cavalcanti, arranjos de Radamés Gnattali e traz Noel a vida novamente. Daí em diante a obra de Noel Rosa voltou a ser gravada mais amiúde por vários intérpretes. Na década de 1960 houve relançamentos de vários discos em 78 rpm para o formato LP e as novas gerações puderam ouvir a voz de Noel cantando e muito de suas gravações originais. Vários LPs foram gravados com músicas de Noel, de cantoras como Aracy de Almeida e Marília Baptista. E dali em diante o artista nunca mais cairia no ostracismo. Com o advento dos CDs, a obra de Noel foi sendo relançada, inclusive com um box com todas as suas composições gravadas.
Em 1990, comecei a comprar discos em 78 rpm em busca de entender mais sobre música brasileira, que não era acessível em LPs e em CDs. E me deparei com os discos originais das gravações de Noel. Escutar um disco de época, gravado pelo próprio Noel, Aracy de Almeida, Francisco Alves, era muito diferente do que escutar já processado para LP ou para CD. Nessas transposições, muito se perde em clareza e instrumentação.
Para mim foi como descobrir Noel novamente, mas de uma outra maneira, através de seus discos originais. A coleção de discos de Noel crescia juntamente com a coleção de música brasileira em 78 rpm. Quando se escuta uma Aracy de Almeida cantando divinamente Cansei de Pedir, nem se pode imaginar aquela senhora rabugenta que era jurada no programa Silvio Santos. Cantora com divisão única, interpretação impecável e afinadíssima. E acompanhada pelo que de melhor tinha em instrumentação: Pixinguinha e seus Diabos do Céu, Grupo do Canhoto, Grupo do Luiz Americano. Só a fina flor da música daquele tempo. E tudo gravado com maestria pela Victor Brasileira sob o comando do temido Mr. Leslie Evans, que era quem decidia o que se iria gravar e com quem se iria gravar.
Evans era um técnico de som primoroso, visto que só havia um microfone e a mixagem era feita na distância de cada instrumento do microfone. E sim, as gravações eram ao vivo, cantor e músicos todos juntos na mesma sala. E não se podia errar. Tanto que se errasse, era bronca na certa e às vezes o disco saía com o erro. Caso de Último Desejo que Aracy canta “e o meu lar é um botequim” quando Noel queria “e o meu lar é o botequim”. Coisas da tecnologia da época.
Escutar Mário Reis e Francisco Alves fazendo duetos nas letras e músicas de Noel é puro deleite. Ouvir Aracy de Almeida em um samba-choro de 1935, chamado Amor de Parceria é o máximo. É uma música em que a mulher não é retratada como uma sofredora e sim uma malandra tirando partido de um homem que se acha o bonzão. E há também, e não podemos esquecer, as músicas que Noel fez para a sua grande paixão Ceci, a dama do cabaré. Uma melhor que outra e todas hoje são clássicos: Último Desejo, Prazer em Conhecê-lo, Só Pode ser Você, Dama do Cabaré.
Noel era inovador e atento ao seu tempo, tanto que suas músicas abordavam assuntos díspares como o horário de verão em O Pulo da Hora (1931); homossexualidade em Mulato bamba (1931); política em Com que Roupa (1929), São Coisas Nossas (1932) / Quem dá Mais (1932) e Onde Está a Honestidade (1933); sátiras em Gago Apaixonado (1931) e Prato Fundo (1933). E a gravação que me pegou para Noel, Philosophia na grafia original (1933), parceria com André Filho, foi gravada originalmente por Mário Reis.
A gravação do Chico Buarque é boa, mas a do Mário Reis é infinitamente melhor (claro, o arranjo e acompanhamento é da Orquestra do Pixinguinha). Essa gravação só foi aparecer em CD 027 da Gravadora Revivendo em 1995, ou seja, a música estava inédita desde 1933 quando foi gravada e só quem poderia escutá-la seria quem tivesse o 78 rpm.
Em 2000, todas as suas composições foram lançadas em uma caixa com 14 CDs e 229 gravações. Todas as gravações originais foram recuperadas e as que nunca tinham sido gravadas o foram finalmente. Noel Pela Primeira Vez são 14 CD’s com a obra completa de todas as primeiras gravações, por iniciativa de mais um apaixonado diletante e pesquisador Omar Jubran que conseguiu, a duras penas, gravações inéditas e desconhecidas e depois as limpou e digitalizou as gravações. O melhor é que agora estão disponíveis todas as gravações das músicas de Noel.
Escutar Noel hoje, não soa antigo nem datado. Suas músicas têm uma contemporaneidade absurda. Quando se ouve o samba Quem dá Mais de 1932 impossível não ver o Brasil de hoje “Quanto é que vai ganhar o leiloeiro, que também é brasileiro, que em três lotes, vendeu o Brasil inteiro, quem dá mais...”. Em 85 anos de ausência física de Noel a humanidade mudou muito pouco, o país também. Suas músicas continuam atuais e podem ser interpretadas sem o medo de serem taxadas de antigas. É um dos maiores compositores modernos que temos. E viva Noel!
Gilberto Inácio Gonçalves é pesquisador da música popular brasileira e colecionador de discos de 78 rpm.
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