Faixa a Faixa

44 Anos de "Frevo Mulher" (1979), de Amelinha

por Luiz Ribeiro Fonseca

segunda, 12 de junho de 2023

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No Brasil, o ano de 1979 provou-se uma espécie de pórtico no qual alguém poderia deixar para trás o passado ditatorial e entrar – mesmo que lentamente – na ante sala da democracia. Na seara da indústria fonográfica, programas como Mulher 80 (1979), da Rede Globo, e shows como Bye Bye 70 (do mesmo ano), produzido por Geraldo Azevedo e Chico Chaves, dialogavam com o momento.

Em meio a tal ebulição, a cantora cearense Amelinha lançava aquele que seria seu segundo (e mais cultuado) álbum, “Frevo Mulher”. Na época, a “voz de toda uma safra”, como foi chamada pelo Jornal do Brasil (RJ), se mudava de São Paulo – onde lançara seu debute, “Flor da Paisagem” (1977) – para o Rio de Janeiro.

Com o câmbio geográfico (e, podemos argumentar, de paisagem visual e sonora), Amelinha buscava “entrar em contato com outros trabalhos” e ampliar seu “raio de ação”, como comentou em entrevista ao mesmo Jornal do Brasil, em novembro de 1979. Tal aspiração se materializou em “Frevo Mulher”: além da faixa-título composta por Zé Ramalho, encontram-se composições de autores do calibre de Cátia de França, além de nomes como o supracitado Geraldo Azevedo, Walter Franco e Raimundo Fagner. Na capa, fotografada por Paulo Klein, Amelinha nos olha fixamente. Ao fundo, a natureza segue seu compasso. 

Desse modo, seguindo o tema do mês dedicado ao Pessoal do Ceará, aproveito para fazer um Faixa a Faixa (com comentários rápidos e experimentais) deste que seria um marco na carreira da cantora cearense, e um alento para a música do Nordeste no final dos anos 70. 

Capa de “Frevo Mulher”. Foto: Paulo Klein (Reprodução).

Frevo Mulher

Entre o arrasta-pé e o frevo, essa canção contém dentro de si uma vasta semente musical e é prova da profunda versatilidade de Zé Ramalho e de sua conexão com os gêneros que, do Carnaval ao São João, nos afetam e nos transformam. A sanfona de Dominguinhos e a percussão do sambista Wilson das Neves ocupam um lugar privilegiado em uma letra dedicada à cantora cearense. Em “Frevo-Mulher”, Amelinha canta a si mesma na perspectiva de um terceiro, construindo uma espécie de espelho musical. O que o olho cego procura?

Santa Tereza

Uma descrição quase cinematográfica de Abel Silva e Fagner sobre uma viagem no bonde de Santa Teresa – ou Tereza, como está na grafia do álbum –, no Rio de Janeiro. Com uma aura circense, anunciando o fim da madrugada e o começo de um novo dia, a canção versa sobre o transeunte que, lendo a carta dos leitores do jornal, se deixa guiar pelo bonde, subindo “o morro da alegria” e descendo “a ladeira do medo”. Destaque para os vocalizes agudos de Amelinha, que contrastam com seu registro grave na parte cantada. 

Dia Branco

Uma das composições mais conhecidas de Geraldo Azevedo se transforma, aqui, em uma balada imersa na interpretação devotada de Amelinha. No entanto, não é um dos pontos fortes do álbum, exceto pelo solo de guitarra executado por Luiz Sergio Carlini. 

Galope Razante

Um baião esotérico. A voz de Amelinha se apresenta tão cortante quanto a viola de Pedro Osmar, que transita entre os dois lados do estéreo (aconselho fortemente a audição com fones de ouvido!), conferindo o movimento necessário à música. O arranjo se assemelha ao de Frevo Mulher, ao passo que a letra remonta a uma atmosfera cigana, semelhante àquela que Ignacio Boix procurou em sua coletânea “Los españoles pintados por si mismos” (1851). Entretanto, ao invés da Andaluzia, estamos no Agreste.

Divindade

Aqui, o clima esotérico se intensifica com a canção composta por Walter Franco. Entretanto, a letra (quase cíclica, típica da lírica de Franco) procura desconstruir o aspecto metafísico de um deus distante e almeja trazê-lo à uma certa dimensão física e terrena. Seja o coração que bate no peito, seja o sentimento de satisfação. Ambos culminam no nada e no tudo. Seguindo esse raciocínio, os vocais que atacam em "Nada" e "Tudo" sublinham as mesmas notas e reforçam a ideia de que a chamada "Divindade" é uma criação humana e se situa entre o caos e o vazio.

Que me venha esse homem

Uma das canções mais controversas e interessantes do álbum. De clima melancólico, intensificado pelos violões de David Tygel e Raimundo Fagner, a composição de Tygel e Bruna Lombardi descreve os limites entre desejo e materialização sexual na voz de uma mulher que anseia por um homem de “músculos exatos”, “desejo agreste” e “febre de fogo”. A interpretação de Amelinha é exata: entre vocalizes e vibratos, a cantora traduz perfeitamente o desespero telúrico do eu-lírico.

Gravura do encarte. Foto: Reprodução.

Coito das Araras

Em uma transição interessantíssima de faixas, a composição da paraibana Cátia de França começa com um prelúdio instrumental e um pedido evocado por Amelinha: “Papagaio da asa amarela / corre e leva esse recado meu pra ela / Minha saudade, ansiedade / Vai no grito estrangulado do meu canto”. A ambiência produzida pelo trio de cordas de José Alves da Silva, Jorge Faini e Watson Clis (dois violinos e violoncelo, respectivamente) dá lugar a um andamento ternário – como uma espécie de valsa acelerada. Sugiro ao leitor que acompanhe atentamente essa passagem e, mais do que isso, ouça o Coito das Araras como uma coleção de fragmentos e cenários: ecoando o realismo fantástico latino-americano e autores como Guimarães Rosa, Cátia de França cria um lugar em que humanos e não-humanos tornam-se um só. 

Dez Mil Dias

Uma ode e uma resposta à nostalgia. Tomando a canção de Paulo Machado para si, Amelinha parece conversar consigo mesma acerca de sua própria trajetória e inspirações musicais. Numa bela interpretação, a cantora canta que “sonhou demais”, ao passo que busca enfrentar o seu “próprio medo”. Destaque para a doçura da celesta – um piano que possui um timbre semelhante ao do sino – executada pelo próprio Machado.

Noites de Cetim

“Pelo sim, pelo não, eu prefiro o vão”. Nessa canção, o eu-lírico reforça a aura (anti-)nostálgica de “Dez mil dias” ao confessar que guarda, em si,  “noites de cetim” e “luas de marfim”. Entretanto, reconhece que vai prosseguir, ainda que perdure o desejo imutável de viajar pelo som, espalhando luz pela Eternidade (grafada em maiúscula). Composição de Herman Torres e Sérgio Natureza, “Noites de Cetim” é uma espécie de despedida da atmosfera hippie dos anos 1970 e um mini-manifesto sobre o eterno retorno.

Pedaço de Canção

Com um apelo divertidíssimo e metalinguístico, a escolha de fechar o álbum com “Pedaço de Canção”, do baiano Moraes Moreira, foi mais que acertada. O poder da Canção é celebrado em toda sua capacidade de voar pelo “véu da cidade” e transmitir a ambiguidade latente do Compositor, que ao mesmo tempo mente e fala a verdade – tudo através da emoção de um acorde menor. Destaque para a participação especial da cantora Elba Ramalho no coro e da banda O Terço nos arranjos. No “rádio do carro, uma voz anuncia o final da canção” e, brilhantemente, do álbum de Amelinha.

Contra-capa de “Frevo Mulher”. Foto: Reprodução.

Sobre o Autor

Luiz Ribeiro Fonseca é músico, jornalista e pesquisador pernambucano. Bacharel em Comunicação (UFPE), atualmente é mestrando na Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFF), e no Programa de Estudos do Sul Global da Universidade de Tübingen (Alemanha). Pesquisa fonogramas comerciais de maracatu gravados na primeira metade do século XX. E-mail: l_ribeiro@id.uff.br 






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