Historicizando as canções

José Ramos Tinhorão, a pedra no mocassim da Bossa Nova

sábado, 21 de janeiro de 2023

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José Ramos Tinhorão nasceu no dia 7 de fevereiro de 1928, em Santos, e partiu no dia 3 de agosto de 2021. Formado em direito mas trabalhou grande parte da vida como jornalista, onde se tornou pesquisador musical, ficou conhecido por seus textos sobre a música brasileira, principalmente, com o embate com a bossa nova. Defendia que o movimento oriundo da classe média carioca não era uma produção autenticamente brasileira, e sim uma música espelhada no jazz estadunidense.

A bossa nova foi um movimento musical que se iniciou com o disco "Canção do Amor Demais", de Elizeth Cardoso, lançado em 1958. A faixa inicial era justamente "Chega de Saudade", composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, assim como todas as demais faixas do disco. Nesse mesmo disco João Gilberto já tocava, como aponta Ruy Castro em seu livro “Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova”.

Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes Fonte: letras.mus.br

Contudo, é em 1959 que a Bossa ganharia o mundo, com o disco "Chega de Saudade", com João Gilberto e sua famosa batida. O disco é considerado um marco da música, tanto que vários artistas famosos inseridos na MPB afirmam lembrar como foi a primeira audição do disco, como mostra o historiador Gustavo Alonso em seu livro “Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga”:

“Eu tinha 17 anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade(...) A bossa-nova nos arrebatou”
Caetano Veloso

“O que me levou para a música dessa forma arrebatadora foi o fato de eu ter 15 anos quando apareceu a bossa-nova [...]”
Chico Buarque

“Lembro-me nitidamente de quando fiquei estatelado ao ouvi-lo pela primeira vez, no rádio da perua Dodge 51 verde, próximo ao Monumento das Bandeirantes, no Ibirapuera [...].”
Aquiles Reis

Esses são só alguns exemplos de como grandes nomes da MPB falam com admiração e respeito sobre o disco de João Gilberto e da bossa nova. Ademais, o próprio Roberto Carlos foi bastante influenciado pelo baiano, como mostra Paulo Cesar de Araújo na biografia “Roberto Carlos outra vez”, antes de fazer sucesso na Jovem Guarda, Roberto Carlos queria fazer bossa nova, chegou ir ao famoso apartamento de Nara Leão mas foi expulso da panelinha. E chegou até mesmo a ser chamado de “João Gilberto dos pobres”, essa informação acaba indo de encontro com um dos pontos da crítica de Tinhorão, mas isso será discutido em breve. Enfim, a bossa nova conquistou o coração de vários músicos famosos e até mesmo dos estadunidenses.

João Gilberto Créditos: DIVULGAÇÃO

Em 1964, um pouco antes do Golpe Militar de 64, é lançado o disco "Getz/Gilberto - featuring Antônio Carlos Jobim", pela gravadora estadunidense Verve Records. Um exemplo do sucesso da Bossa no exterior.

Em 1966, Tinhorão tem seu livro “Música popular: um tema em debate” publicado, e foi nesse trabalho que o embate com a bossa nova ficou conhecido.

Tinhorão no livro nos conta que o samba nasceu como gênero carnavalesco que se aproveitava de ritmos baianos por parte dos compositores cariocas, em especial Sinhô, feito por negros, mas que aos poucos foi sendo apropriado por setores médios da sociedade carioca, que tinham espaço na rádio e nos discos, que sofriam constante influência de estrangeirismos, assim distanciando o samba de sua origem.

Na década de 1930, o samba e a marcha já são a “regra”, mas “amansados”, modificados para os gostos da classe média, com variações no ritmo fundamental 2/4: marcha, marchinha, marcha-rancho, samba-choro, samba-canção, entre outros. Tinhorão faz um paralelo do samba com o jazz nos EUA, também criado por negros e que aos poucos foi sendo apropriado e modificado pelos brancos. E o mesmo pode ser dito sobre o rock.

Segue um trecho do livro de Tinhorão:

Filha de aventuras secretas de apartamento com música norte-americana – que é, inegavelmente, sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje(1966) o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai.

Até pouco tempo, tal como acontece em certo samba de João Gilberto, os personagens dessa história de amor pelo jazz eram tão obscuros e ignorados que se pode dizer que o pai da novidade seria um João de Nada, e ela – a bossa nova – uma Maria Ninguém.

Acontece que, de uma hora para a outra, a mãe norte-americana da jovem bossa meio-sangue resolveu reconhecê-la publicamente como filha, acenando-lhe com uma herança fabulosa de dólares – em direitos autorais”

Esse trecho já evidencia o posicionamento de Tinhorão sobre a bossa nova, para ela o movimento oriundo da classe média carioca era influenciado pelo jazz estadunidense e não pelo samba do morro. E parte dos dólares provavelmente deve se referir ao disco já citado, Getz/Gilberto, como também, o show no Carnegie Hall, em Nova York, que ocorreu em 21 de novembro de 1962, graças aos esforços da gravadora estadunidense Audio Fidelity e ao Itamaraty,  lembrando que Vinicius de Moraes era diplomata.

A apresentação contou com a presença de Antônio Carlos Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Carlos Lyra e outros nomes da bossa nova.

Como ainda, em 1967 foi lançado o disco Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim, e não é preciso explicar aqui quem é Sinatra e o que ele representa para o mercado fonográfico estadunidense.

Festival no Carnegie Hall em 1962; na foto, Roberto Menescal, Ana Lúcia, o conjunto de Oscar Castro Neves, Carlos Lyra (cantando), Dom Um Romão e Chico Feitosa Foto: Dan Bleiweiss/Divulgação

Aprofundando o raciocínio de Tinhorão, os jovens da bossa nova eram oriundos de uma classe média carioca recente, de Copacabana, um bairro recente comparado a outros mais tradicionais, como a Barra da Tijuca. Nessa Copacabana, pós segunda guerra mundial, essas famílias de classe média viviam em apartamentos, esses jovens não tinham a vivência da rua, os costumes das classes mais baixas. Esse jovem de apartamento não se identificava com o “asfalto”. Essa classe média não tendo com quem se identificar na cultura popular de seu próprio país, se espelha em sua equivalente no país mais desenvolvido, nesse caso, Estados Unidos da América. Esse jovem começa a usar blusa escrito Harvard, óculos Ray-ban e seu estojo preso ao cinto no lado esquerdo, não usa sapato de cadarço e sim mocassim, porém, sem meia, para ser moderno era preciso usar sem meia. Assistia filmes hollywoodianos e comprava discos de jazz, mas não qualquer jazz, mas sim o jazz já apropriado pelos brancos estadunidenses, uma produção mais intelectualizada, distante de sua origem.

Trocando em miúdos, essa juventude de Copacabana tinha como horizonte o jazz feito em Nova York e não o samba feito no morro ao lado. Podiam usar o violão como os sambistas mas queriam uma sonoridade diferente, “moderna”, pois o samba do morro era considerado atrasado. Por isso, para Tinhorão a bossa nova é um jazz pasteurizado e não uma variação do samba.

Para corroborar a argumentação que bossa nova seria jazz, Tinhorão usa uma reprodução do convite para a noite no Carnegie Hall:

Reprodução do convite presente no livro Música popular um tema em debate Créditos: Matheus Bomfim e Silva

Para complementar, vou usar uma playlist oficial da plataforma Spotify em que as músicas da bossa nova estão inseridas:

https://open.spotify.com/playlist/37i9dQZF1DX661EjJOj3Tu?si=d02b101231fe48c2

A mãe norte-americana reconheceu a filha, pelo menos para os estadunidenses a bossa nova seria um jazz latino/brasileiro, aliás, Tinhorão afirma justamente que esse seria o motivo da bossa nova nos EUA, por ser justamente um som que os estadunidenses já estariam familiarizados .

Henricão, José Ramos Tinhorão e Carmen Costa no programa "Tudo é música" da TV Educativa do Rio / Acervo IMS

Tinhorão manteve seu posicionamento até o fim, ganhou a pecha de chato, de ser um ranzinza e nacionalista radical. Entretanto, José Ramos Tinhorão é uma referência fundamental para todos que estudam a música no Brasil, tendo livros publicados até mesmo em Portugal, sua leitura é obrigatória. Foi um grande pesquisador, seu vasto acervo foi adquirido pelo Instituto Moreira Salles, que facilitou o acesso aos demais pesquisadores. Mesmo sendo bastante conservador ao delimitar cultura popular e o que seria ou não autêntico, foi importante para o desenvolvimento das pesquisas no tema da cultura popular no país. Além do mais, a bossa nova chegou ao morro? O motorista de ônibus ou a vendedora  conhecem a batida de João Gilberto ou apenas a classe média e universitária que conseguiram consumir isso?




Foto de capa: José Ramos Tinhorão em seu apartamento, em São Paulo, em 1990 - Mônica Vendramini / Folhepress

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