Na Ponta do Disco

Elis, amor, equilíbrio e h(H)istória

Por Rafaela Lunardi

quarta, 26 de janeiro de 2022

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Muitos brasileiros têm uma história com Elis Regina. Eu também tenho a minha, que, por ironia do destino, se confunde com a nossa, do nosso país.

Como pesquisadora/ acadêmica, nunca pude, por ética e métodos próprios da minha área, que é a História, escrever o quanto amo Elis e como ela sempre marcou minha vida. Aqui, nesse despretensioso texto sobre os 40 anos de sua morte, encontrei esse espaço.

Lembro de um dia, no interior do Paraná, estar em casa, em uma sala simples, diante de uma TV. Estava ao lado da minha irmã, a Tau, 17 anos mais velha, que lastimava uma grande perda, chorava. Recordo que fiquei muito triste também, mesmo sem entender o que era aquilo tudo. Uma lembrança remota, uma das primeiras que tenho na vida.

Bem mais tarde, soube, não sei como, que aquele dia foi da morte, velório ou sepultamento de Elis Regina, aquela que, de quando em quando, enchia a casa com a potência da sua voz e me provocava curiosidade ao ver o disco girar, na altura dos olhos, no toca-discos.

Velório e sepultamento foram insistentemente noticiados e televisionados, com imensa comoção nacional, só comparada posteriormente, com a morte de Tancredo Neves, em 1985, e de Ayrton Sena, em 1994, como tomei conhecimento, décadas depois.

Cresci vendo e ouvindo discos da Elis em casa, e, quando adolescente, me descobrindo, me apaixonei, junto a uma grande amiga, do “Elis e Tom” (que, confesso, não sei como foi parar em nossas mãos). Ensaiávamos cotidiana e exaustivamente “Águas de março” para absolutamente nada. Só pelo prazer de cantar! A Má era sempre a Elis, eu, o Tom. Cantar Elis era uma brincadeira, só nossa, que revivemos, aos risos, com quase 30 anos.

Adulta, descobri outras canções de Elis e elas embalaram meus amores (felizes ou frustrados), as limpezas de casa, as festas, os momentos de deleite.

Assim que terminei a graduação, a Elis apareceu na minha vida na forma de trabalho. Prazer, alegria e (muita) dedicação fizeram parte dos meus estudos sobre a trajetória da cantora. Dormia, acordava e passava o dia com Elis. Conversava com ela (na loucura cotidiana de todo mundo), a ouvia insistente e sistematicamente, lia e falava sobre ela... nesse processo, me peguei, inúmeras vezes, dançando e cantando suas canções, esquecendo completamente o que eu estava procurando perceber. Foi amor, foi emoção, que, no entanto, precisaram ser equilibrados com os métodos acadêmicos/científicos de se fazer pesquisa. O grande historiador francês, Marc Bloch, uma das mais clássicas e importantes referências historiográficas no Brasil, já tratou, quase um século atrás, da importância do distanciamento do historiador de seu objeto de pesquisa. Assim, a (às vezes agonizante) busca do maior equilíbrio foi uma constante.

Fato é que Elis sempre me acompanhou. Admiro demais essa cantora, pela mulher e pela artista que foi.

Em um universo eminentemente masculino, como todos os outros, ela e outras cantoras, como Maria Bethânia, Gal Costa, Clara Nunes, Nara Leão, entre poucas outras, se colocaram e conquistaram um espaço nobre.

Elis que o diga! Aos dezenove anos de idade, ainda muito jovem, simplesmente se tornou na maior estrela da Música Popular Brasileira, vencendo o primeiro de uma era de famosos festivais da canção, mesmo com sua dança considerada estranha aos padrões minimalistas da época.

Tornou-se capa das principais revistas brasileiras de entretenimento e começou a apresentar o primeiro e mais famoso programa de MPB da década de 1960, ao lado do também saudoso, Jair Rodrigues: "O Fino da Bossa".

"O Fino" e os festivais da canção apresentaram ao público brasileiro grandes nomes da nossa música popular, alguns ainda vivos, para o bem do nosso país, da nossa cultura e da nossa história, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil.

Além de seu talento, Elis tornou-se conhecida no meio musical por dar visibilidade a novos compositores, como os ainda novatos, nos anos 1960, Milton Nascimento e Gilberto Gil, por exemplo. Na década de 1970, sem a rapidez da internet, era comum que eles entregassem fitas cassete para ela ouvir. Dizia-se que tinha muitas. João Bosco, Aldir Blanc, Ivan Lins, Belchior, Renato Teixeira. Será que resta dúvida de quanta gente incrível ela deu visibilidade no concorridíssimo mercado musical, conquistando lugares especiais em nossas vidas, em nossas histórias, em nossas alegrias e tristezas?

Uma carreira rica, cheia de sucessos e percalços, mas com balanço final positivo: especialmente a partir do espetáculo "Falso "Brilhante", Elis Regina tornou-se uma artista mais, digamos, completa, combinando sua quase constante grande popularidade à consagração da crítica musical de sua época.

Elis teve três filhos, Maria Rita, João Marcelo e Pedro, e, hoje, tem netos, todos pedacinhos vivos seus. Ela também permanece viva no coração e na mente de uma infinidade de admiradores, tanto no Brasil, como em outros lugares do mundo.

Há 40 anos, ela é uma estrela, compõe constelações de exímios artistas brasileiros que nos deixaram, de Pixinguinha, Vila Lobos, Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira, Tom Jobim, Gonzaguinha... a Belchior, Aldir Blanc, Morais Moreira e Elza Soares.

Que Caetano, Chico, Bethânia, Gal, João Bosco, Milton... sejam eternos ainda em vida, e que Elis continue brilhando bem próxima a nós, saudando e orientando os novos que chegam!

Ah, Elis, talvez, mais do que nunca, na História da nossa recente redemocratização, falta-nos, como povo, como nação, a potência da sua voz. Nos dias de hoje, 40 longos anos após a sua partida, ainda "é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter sonho sempre" no Brasil....



Rafaela Lunardi
Doutora e Mestre em Historia Social pela USP. Bacharel e Licenciada em História pela UFPR. Autora do livro “Em busca do ‘Falso Brilhante: performance e projeto autoral na trajetória de Elis Regina” (Intermeios, 2015) e co-autora de “História do Brasil contemporâneo: da Era Vargas aos dias atuais” IESDE, 2020). Autora e editora de materiais didáticos para Educação Básica.


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