Tema do Mês

Ver para ouvir: a arte gráfica nas capas da música brasileira

TEMA DO MÊS de JUNHO!

terça, 02 de junho de 2020

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Diz o senso comum que não devemos julgar um livro pela capa. Será que o mesmo pode ser dito sobre os discos? Tudo bem, talvez não se deva julgar, mas sem dúvida, é possível apreciar um disco só de olhar para o seu invólucro, antes de saber o que ele guarda. 

Afinal, muitos álbuns antológicos da música brasileira possuem capas igualmente antológicas. Como falar de Secos & Molhados sem mencionar aquela capa histórica, com os quatro integrantes (na época, o baterista Marcelo Frias ainda era membro oficial do conjunto) servidos de bandeja em uma mesa repleta de… secos e molhados!? Ou quem é que escuta o disco do Clube da Esquina de 1972 sem se impactar com a foto feita por Cafi dos dois meninos sentados na beira da estrada poeirenta de Minas Gerais? 

O fato é que antes de ouvir a música, nós a vemos. E o atrativo visual dos produtos artísticos e fonográficos sempre foi muito explorado pelos músicos e pela indústria cultural. Antes mesmo que existissem os discos, por exemplo, em fins do Século XIX já se comercializavam folhetos com partituras para piano, geralmente encadernados com ilustrações coloridas, que saltassem aos olhos do consumidor. 

Entre os anos 1930 e 1950, já com o advento da indústria fonográfica massiva, os discos eram vendidos, não em capas individualizadas, mas em envelopes padronizados, que estampavam o logotipo da gravadora e deixavam um orifício circular central vazado em que se liam as informações específicas daquele produto, tais quais o nome do intérprete, o título da canção e o crédito dos compositores da música que estava sendo vendida. 

Essa aparente simplicidade não impediu que algumas gravadoras cometessem certas inventividades gráficas. Bom exemplo é um envelope do selo Copacabana, que brincava com a própria materialidade do disco, com uma ilustração que marcou época. 


As capas individualizadas

Foi só em meados dos anos 1950, depois da invenção do long-play (no dia 21 de junho, pela Columbia Records) que as gravadoras passaram a criar uma identidade visual própria para cada trabalho. 

No Brasil, uma das primeiras e mais celebradas foi a do álbum “Aracy Canta Noel”, lançado em 1954. Apostando pesado naquele novo formato que permitia mais músicas e um tempo maior de audição, a Continental chamou ninguém menos que Di Cavalcanti para produzir a arte da capa. Isso mesmo, o pintor modernista que fez história nas artes plásticas brasileiras. 

Resultado: esse disco, além de ser uma pérola no repertório de Aracy de Almeida, é hoje visto como uma obra de arte, e um exemplar dele não pesa menos do que R$500 no bolso de um colecionador. Depois dele, muitas outras gravadoras passaram a apostar em belas ilustrações para estampar seus novos lançamentos em long-playing. 


Mas a década de 1950 foi tempo de pós-guerra, depressão misturada com euforia, crescimento do mercado consumidor e expansão frenética da cultura de massa e da linguagem publicitária. A fotografia, nesse contexto, caiu como uma luva. As grandes estrelas do rádio, como Angela Maria e Cauby Peixoto, além de estamparem as capas das revistas especializadas da época, passaram também a ter seus rostos reproduzidos massivamente nos muitos discos  que lançaram nesse período. 

Uma “capa-fotografia” memorável, lançada em 1959, foi a do disco "Chega de saudade", de João Gilberto. Longe do glamour ostensivo dos ídolos radiofônicos, esse trabalho de César Vilela sobre fotografia de Francisco Pereira revela um João contido e melancólico - “moderno”, assim como o novo gênero que o baiano inaugurou com esse disco: a Bossa Nova


Anos 60: César Vilela e a Bossa Nova 

Depois disso, César Vilela se tornou um dos grandes nomes do design brasileiro. O auge de sua produção aconteceu a partir de 1963, quando foi convidado por Aloysio de Oliveira para ser diretor artístico de seu novo selo, Elenco, que reunia um cast estelar ligado à Bossa Nova

Motivado pelos poucos recursos financeiros, ele criou uma identidade única para todos os discos da gravadora: capas em preto e branco, com pequenos detalhes em vermelho. Com isso, traduziu para o âmbito visual o que a Bossa Nova fez musicalmente: o minimalismo, a concisão e a sofisticação. 

Um exemplo célebre é do incrível disco ao vivo de Maysa lançado em 1964, que ressalta o olhar intenso e hipnótico da cantora que tinha um “oceano não-pacífico” dentro dos olhos. 


A sacada genial também deu certo comercialmente: bastava olhar para essas capas para saber que se tratava de um “disco da Elenco”, que logo se tornou sinônimo de prestígio. Tanto é que muitas gravadoras passaram a imitar descaradamente esse estilo. 

Rogério Duarte e a Tropicália 

Já na segunda metade da década de 1960, outro movimento musical revirou a música brasileira pelo avesso e outro artista gráfico revolucionou as capas dos discos no Brasil. Em 1967, a turma liderada por Caetano Veloso e Gilberto Gil surgiu trazendo propostas explosivas que passavam pela apreciação das influências estrangeiras, utilização da estética publicitária e noções da pop art encabeçada por Andy Warhol nos Estados Unidos.  

Rogério Duarte (falecido em 2016) já tinha seu nome conhecido pela associação com o movimento do Cinema Novo. Foi ele o criador, por exemplo, do famoso cartaz do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, lançado em 1964. Quando os dois mentores do movimento tropicalista foram gravar seus discos solo em 1968, foi Rogério quem criou as capas, ajudando a conceituar a estética visual da Tropicália, até hoje fortemente associada ao movimento. 

O disco de Caetano, por exemplo, mostra o rosto do jovem cantor e compositor emoldurado por uma explosão de cores e elementos tão inusitados quanto um dragão e um cacho de bananas. 

Já o de Gilberto Gil se tornou célebre por adotar elementos da psicodelia e retratar o músico baiano vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras, numa deliciosa provocação que é a cara do movimento tropicalista. 


Essa estética ficou visível também em outra peça histórica: a capa do disco-manifesto “Tropicália ou Panis et Circencis”, assinada por Rubens Gerchman sobre foto de Oliver Perroy, que reúne todos os membro do movimento em uma versão (ou paródia?) abrasileirada e irreverente do disco “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles

Anos 1970: ousadia e contracultura

Os anos 1970 foram revolucionários em muitos sentidos. Foi realmente uma década decisiva para a humanidade. No cinema, na literatura, na música, nos costumes, e também nas capas dos discos. 

A produção gráfica desse período foi marcada por um amadurecimento estético e criatividade muito grandes. Não à toa, são dessa época muitas das capas até hoje consideradas históricas. Além das já citadas “Clube da Esquina” e “Secos & Molhados”, tivemos também “Pérola Negra”, de Luiz Melodia (assinada por Rubens Maia), o “disco do tênis” de Lô Borges (por Cafi Ronaldo Bastos), “A Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben Jor (por Aldo Luiz), “Alucinação”, de Belchior (por Januário Garcia), dentre muitas outras. 

Não se deve esquecer, ainda, que em 1970 o Brasil vivia o momento mais repressivo do regime militar, quando a arte se viu ameaçada pela censura, a prisão e o exílio. Além de centenas de músicas, muitas capas sofreram com isso também. Um dos exemplos mais conhecidos é de Gal Costa, que estampou no disco “Índia”, de 1973, um close provocante feito por Antônio Guerreiro, que mostra a cantora (ou parte dela) usando uma tanga vermelha, colares de conta e saia de palha. Na contracapa, Gal deixou os seios à mostra. 


Foi mais do que o suficiente para que a censura obrigasse a gravadora Philips a comercializar o álbum envolvido por um invólucro azul opaco. Anos mais tarde, em 1978, Ney Matogrosso passou por situação semelhante quando resolveu posar nu para o miolo do álbum “Feitiço”

Elifas Andreato 

Impossível falar das capas dos anos 1970 sem mencionar o nome de Elifas Andreato, que revolucionou o mercado nesse período. Assim como César Vilela ficou associado à sofisticação da Bossa Nova nos anos 1960, Elifas se especializou no samba e na música popular. Seu traço forte, dramático, por vezes melancólico, ilustrou capas de Martinho da VilaPaulinho da ViolaChico Buarque e muitos outros, traduzindo graficamente a assombrosa angústia causada pelos anos de chumbo no Brasil. 

Há duas capas criadas por ele que são particularmente consideradas obras-primas. A primeira é “Nervos de Aço”, de Paulinho da Viola, que retrata o sambista chorando sob o luar com um quase sorriso nos lábios e um buquê de flores nas mãos. A outra é a politizada “Rosa do Povo”, de Martinho da Vila, que faz referência ao poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade. Nela, assim como no poema, uma rosa brota por entre os pés de um trabalhador rural, simbolizando a esperança e a revolução  que estaria a caminho. 


Do disco ao streaming

De lá pra cá, muita coisa aconteceu. As capas dos anos 1980 foram marcadas pela alegria eufórica e colorida de colagens pop como a do lendário “As Aventuras da Blitz” (por Luiz Stein e Gringo Cardia) ou pela sensualidade transbordante de cantoras como SimoneFafá de Belém Joanna, que posaram mais provocantes do que nunca nesta fase. Esta última, inclusive, deixou transparecer parte do seio na capa do álbum “Vidamor”, em 1982. 


Entre os anos 1980 e 1990, uma revolução na indústria fonográfica: o surgimento do CD. A redução considerável do tamanho do produto físico inicialmente assustou muita gente, que apostou no fim de capas impactantes. Não foi, no entanto, o que aconteceu. O advento do Photoshop e a criação dos encartes internos recheados de informações continuaram fazendo a alegria dos olhos de quem ouve música. 

E realmente não faltou criatividade. Em 2002, Vik Muniz retratou Arnaldo AntunesMarisa Monte e Carlinhos Brown utilizando apenas calda de chocolate na capa do best-seller “Tribalistas”


Ainda em 2000, a dupla Sandy & Junior causou frisson nos fãs ao comercializar quatro capas diferentes do álbum “Quatro Estações Ao Vivo”, em que cada uma representava uma estação do ano diferente. 


Nos últimos anos, uma nova revolução: até os CDs se tornaram vintage e o streaming se consolidou como a nova forma de se consumir música. Com isso, as capas dos álbuns foram reduzidas a minúsculos ícones na tela do celular. E o que se tem visto por aí é que isso não limitou o capricho e a criatividade dos artistas na hora de conceber o projeto visual de seus trabalhos. 

A capa de “Letrux em noite de climão”, idealizada por Mariana Abasolo sobre foto de Ana Alexandrino, do álbum de estreia da cantora independente Letrux, tornou-se uma espécie de “viral” no meio indie brasileiro. A cor vermelha e o gestual marcante da cantora, presentes na arte em questão, proliferaram em filtros do Instagram, nos clipes das músicas, no figurino dos shows e até em fantasias de carnaval de foliões anônimos. 

Mais recentemente, Elza Soares teve a capa do seu novo trabalho de inéditas assinada por Laerte, uma das mais conceituadas cartunistas brasileiras, que fez de “Planeta Fome” uma das melhores capas da discografia da intérprete. 


Como se vê, do Século XIX ao XXI, não dá para dissociar música e design gráfico. Ou melhor: até dá, mas a experiência fica muito melhor quando as duas coisas andam juntas. Seja na Era do Rádio, nos anos de chumbo ou na pós-modernidade, ver e ouvir música se tornou uma das maiores vocações e alegrias de quem consome cultura no Brasil.

Texto por: Tito Guedes
Imagens: Divulgação/Internet

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