Música

O melhor da parceria entre Silvio Caldas e Orestes Barbosa

Capítulo 3 da série especial 110 anos de SILVIO CALDAS

segunda, 21 de maio de 2018

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Numa época em que as ideias de Freud estão ainda distantes das canções populares brasileiras, Orestes Barbosa simula, na valsa "Quase que eu disse", um "ato falho", por meio de tropeços em palavras, ações ou pensamentos, um desejo profundo se realiza. Na música, o poeta, ao cantar uma saudade intensa, por pouco não deixa escapar o segredo do coração: 

Oh! Quanta desgraça junta!
Toda cidade pergunta
E vai dizendo o que quer
Da mágoa que me devora...
(E quase que eu disse agora
O nome desta mulher...)

(Orestes Barbosa e Silvio Caldas, "Quase que eu disse")


Após ganhar melodia de Silvio Caldas, fornece um assunto a mais para os mexericos do Café Nice. Os frequentadores buscam descobrir o nome da musa. Uns pensam em Dora, outros em Flora, muitos em Débora. A última hipótese alimentada pela troca comum em língua portuguesa do "v" pela "b". Muitas palavras derivadas do latim sofreram esta mudança: de labor para lavor; de rabies para raiva. Fuxicos alimentados pelos segredos de Orestes Barbosa. Às vezes, nem o parceiro Silvio sabe por onde ele anda, dizia ser meio misterioso, procuravam em toda a parte e não o encontravam.

Silvio Caldas e Orestes Barbosa afinam-se, também na atração pelos cassinos, onde seus jogos prediletos são a roleta e o bacará. Normalmente sem sorte, guardam no fundo do bolso dois mil e quinhentos réis. Quantia suficiente para matarem a fome na volta, com a generosa porção de empadas e arroz do Café Suisso. Andavam num tempo de más sortes, Orestes tentara outras distrações em novos jogos, mas numa aporrinhação e com o juízo perturbado após disputa pela campista contra a mente matemática infalível do jogar profissional Jorge Faraj, Orestes Barbosa saiu queimado e acabou preferindo voltar para a roleta. Certa madrugada, de volta ao Cassino da Urca, depois de perderem mais uma vez, caminhando a pé pela praia do Flamengo, Silvio Caldas comenta a má sina da dupla, indagando que algo de errado havia! Ora, pois bastou que Silvio comentasse para que seu companheiro se atinasse "É o jumento, Silvio Caldas!" Orestes Barbosa ganhou um jumento de seu primo sergipano em agradecimento ao tempo que passou hospedado na casa do poeta. O animal, que o primo mandou trazer lá de sua terra natal, era para Orestes a fonte da má sorte. Dito e feito. Assim que chega em casa, no Maracanã, Orestes liberta o asno. Sem conseguir se desembaraçar da "urucubaca".

Após outra noite de fracasso, ainda nas dependências do Cassino da Urca, os parceiros observam um casal discutir. Silvio e Orestes fazem conjecturas sobre a razão da briga: "Aquilo deve ser ciumada". A desavença do casal dá a Silvio Caldas a ideia de um enredo: o homem vai embora, sobe para o seu apartamento e espera a mulher que não vem. Enredo perfeito para uma canção. "Arranha-céu" nasce assim.

Cansei de esperar por ela
Toda a noite na janela,
Vendo a cidade a luzir
Nesses delírios nervosos
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir...

(Orestes Barbosa e Silvio Caldas, "Arranha-céu)


O cassino aparece na valsa "Meu Erro". Não diretamente, mas para definir um coração feminino. Silvio Caldas demora a encontrar a música de "Meu Erro". A ideia melódica surge somente após assistir ao filme Madame Butterfly. Uma película baseada na ópera homônima de Giacomo Puccini. O compositor sai do cinema com a ária "Un bel di vedremo" na cabeça. De suas primeiras notas, nasce o tema de outra composição de Orestes e Silvio:

Tu tens no peito um cassino
E eu, tão tristonho, imagino
As noites do teu fulgor.
No meio das luzes, louca,
Servindo de boca em boca
O vinho do teu amor!

(Orestes Barbosa e Silvio Caldas, "Meu erro")


Por contraste com o brilho das roupas, das jóias e das luzes dos cassinos, Orestes Barbosa pensa na vida simples dos subúrbios. E anuncia a Silvio Caldas, parceiro de música e jogatina, a ideia de uma nova canção: a menina suburbana que gosta de serenata. A temporada em Todos os Santos, ainda adolescente, deixou na alma do poeta lembranças antes doces do que amargas. Em 1935, entrega a Silvio Caldas "Suburbana":

Minha linda suburbana,
Por trás da veneziana,
Vem sorrir nesta canção.

(Orestes Barbosa e Silvio Caldas, "Suburbana")


Orestes Barbosa admira belezas distantes dos padrões cinematográficos estrangeiros. Além de exaltar os lábios das suburbanas, louva os narizes e as peles das mulheres do "bairro turco", no centro da cidade. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, os nascidos em países do império otomano desembarcaram no Brasil com passaporte turco. Para os cariocas, todos se irmanaram na geografia generosa da rua da Alfândega. Todos são turcos. O poeta gosta de lábios carnudos, perfis aquilinos e vozes roufenhas. Mais uma vez, em parceria com Silvio Caldas:

Eu me prendi nos teus braços
Queimados pelos mormaços,
Escravo do teu perfil.
Tens o Oriente na boca,
Linda mulher de voz rouca,
Ó turca do meu Brasil

(Orestes Barbosa e Silvio Caldas, "Turca do meu Brasil")


Tem olhos para a garota do subúrbio e a pequena turca do Centro. Em breve, vai escrever uma das jóias da música romântica brasileira, considerado por Manuel Bandeira versos dos mais admiráveis de nossa lírica, popular ou não: "Tu pisavas nos astros distraída".


Trechos deste texto foram extraídos do livro "Orestes Barbosa - Repórter, Cronista e Poeta", por Carlos Didier



Este é o terceiro de 5 artigos sobre a vida e carreira de Silvio Caldas, o seresteiro do Brasil, falecido há 20 anos e que neste mês de maio celebra 110 anos de vida, de música, de afamadas canções. No próximo capítulo, leiam sobre a criação de "Chão de Estrelas", canção que Silvio gravou diversas vezes.

Clique nos links abaixo e navegue por esta série especial:

Capítulo 1 - Silvio Caldas, o Caboclinho Querido!
Capítulo 2 - Silvio e Orestes no Café Nice
Capítulo 3 - O melhor da parceria entre Silvio Caldas e Orestes Barbosa (lendo agora)
Capítulo 4 - De 'Chão de Estrelas' à turnê (em breve)
Capítulo 5 - Músicas Imortais (em breve)

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