Música

Clementina de Jesus, um fenômeno telúrico exclusivamente brasileiro

por Mila Ramos

quinta, 19 de julho de 2018

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Morreu no dia 19 de julho de 1987, foi velada no teatro João Caetano –  onde havia brilhado em tantos espetáculos – ao som do partido "Clementina, cadê você?". Encerrava-se, assim, um ciclo, fechava-se a mandala da estação terrena. Mas o mito permanece e quem bem o expressou foi Milton Nascimento na capa do LP Clementina de Jesus, de 1976.

"Teria um livro inteiro pra começar a falar sobre a beleza dela. Mãe, que trabalhão!"

Em 1965, criado por Hermínio Bello de Carvalho e produzido por Kleber Santos, estreou o musical Rosa de Ouro que revelou ao Brasil a presença de Clementina de Jesus. Ela, a empregada doméstica, engomadeira de roupa e banqueteira que nem suponha as próprias potencialidades, revelou-se no palco um diamante em estado puro, seu talento veio a público e foi reverenciado. O próprio Hermínio definia o espetáculo como uma homenagem aos grandes músicos populares no Rio de Janeiro. Ou, conforme proclamavam os anúncios de jornal, " um espetáculo de samba autentico". O partido-alto de Elton de Medeiros perguntava: "Clementina, cadê você?" Então a força arrasadora da presença dela dominava tudo. Com os gestos muito seus de cruzar e descruzar as mãos erguidas, Quelé abria a voz de contralto de raro timbre e divisões próprias, personalíssimas. A voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimento perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda raça humana. Mãe primeira, amorosa e terrível. O Benguelê, profundo como um canto ancestral, preenchia os espaços todos. A nega Clementina foi coroada rainha e coberta com o manto da mãe África, sob aplausos e comoção.

Em sua homenagem, nesses 31 anos de saudades, trazemos o texto contido no encarte do LP Clementina de Jesus, 1966, da Odeon.

Boa Leitura!



| CLEMENTINA DE JESUS, 1966 |

Conheci Clementina de Jesus no dia 15 de agosto de 1963, ela festeira assídua das comemorações domingueiras de Nossa Senhora da Glória. Iluminada em suas rendas brancas, a partideira cantava como sempre cantou, de alegria, por necessidade de comunicação. Naquele momento, senti que acabava de acontecer algo importante em minha vida! Perdi-a de vista, só fui revê-la na festa de inauguração da casa de samba de meus afilhados Cartola e Zica. E, a partir daí, não mais nos perdemos. Passei a ensaiá-la em minha casa (raramente cantava com acompanhamento: fazia-o livremente, seu repertório era imenso, mas lembrado fragmentadamente). E na noite de 7 de dezembro de 1964, através do movimento de vanguarda “O Menestrel”, de música e poesia, que fundei no Teatro Jovem, apresentei-a em concerto, fazendo a segunda parte de um recital em que atuava o violonista clássico Turíbio Santos.

A crítica foi, em geral, avassaladora. O severo crítico Andrade Muricy, presidente da Academia Brasileira de Música, classificou-a de extraordinária, e, não foram menores os outros elogios. Meu Rosa de Ouro, levado em 1965 no Teatro Jovem e no Oficina de São Paulo, a consagraria definitivamente. No mesmo ano, integra a gravação do elepê da peça — que acaba de ser editado pela Pathé Marconi na Europa, depois de receber diversos prêmios e citações como o melhor do ano, aqui em São Paulo. Em 1966 recebe importante missão do Governo Brasileiro: representa o Brasil em dois festivais internacionais de grande repercussão — o de Artes Negras, em Dakar, e o de cinema, em Cannes. Não tenho porque disfarçar o orgulho de havê-la revelado ao público. Igual a Pastora Pavón e a Ma Rainey ou Bessie Smith, Clementina de Jesus tem um papel histórico em nossa música. Ela é igualmente um gênio do canto popular, com aquele “poder misterioso que todos sentem, mas que nenhum filósofo explica” — e cito Goethe para justificar o quanto é difícil analisá-la. E aqueles “sons negros”, aduzidos por Garcia Lorca, são a tônica na arte da partideira. Nessa arte repousa um primitivismo de raízes fetichistas que, de resto, demarcam toda e qualquer expressão solidamente brasileira. Como não reconhecer na arte vegetalmente pura de Clementina a síntese de nosso próprio processo musical? Mário de Andrade e Villa-Lobos pensariam assim, estou certo. A partideira nasceu em Valença, Estado do Rio de Janeiro, em 7 de fevereiro de 1902. Filha do estucador Paulo Batista dos Santos (violeiro nas horas vagas) e da parteira Amélia de Jesus dos Santos, que foi beneficiada pela Lei do Ventre Livre, escapando de ser escrava como foram as avós de Clementina: Teresa Mina e Eva. Moravam na Rua Carambita, numa casa situada a meio caminho de uma elevação, e em cujos fundos passava um córrego, onde dona Amélia ia enxaguar as roupas, enquanto cantava para se distrair.

Clementina ficava sentada, vendo a mãe no ofício, e só despertava de suas cismas quando dona Amélia lhe gritava “Tina, acende o cachimbo!”, e ela atendia e a cantoria recomeçava. Ouvindo sua mãe cantar, Clementina foi crescendo. Vieram para Jacarepaguá quando tinha oito ou dez anos, disso não se recorda bem. A situação financeira não andava boa, tampouco aqui melhorou. Mas o orgulho falou mais alto, e o velho Paulo não quis fazer feio — e não debandou daqui. Foram morar na Praça Seca, perto de “seu” João Cartolinha, que botava “agrupamentos” na rua por ocasião das Folias de Reis. Clementina fez logo amizade com Josefa, filha de seu João, e daí a pouco o festeiro ia pedir permissão ao “Tio Paulo” (assim era tratado o pai de Clementina) para a menina frequentar seus pagodes, muito ordeiros e familiares. Seu Paulo disse que era ainda cedo, a menina precisava de instrução, e de fato lá foi ela como semi-interna para o Orfanato Santo Antônio, de onde só se retirava quando os sinos batiam às seis da tarde. De lá vem o hábito, que ainda persiste, de misseira fervorosa. Mas em seu peito existe o lanho feito a fogo em Oswaldo Cruz, por crença de sua mãe que assim pensava fazer a filha de “corpo fechado”.

Cresceu assim, num misticismo estranho: ouvindo a mãe rezar em jejê nagô e cantar num dialeto provavelmente iorubano, e ao mesmo tempo apegada à crença católica. Cantava de dia no coro da igreja, e de noite, quando chegava dezembro era certo encontrar a “Quelé” (esse o apelido que ganhara em Jacarepaguá) na casa de seu João Cartolinha. Até os 15 anos saiu de “peixeira” nas Folias. Ainda se recorda de uma cantiga dessa época: “sou a peixeira catita / que vende peixinhos bons / apregoando meus peixes / eu canto em diversos tons”. Seu João, por essa época, foi convidado a conhecer a agremiação As Moreninhas das Campinas e levou Clementina, cuja voz bonita já ganhava fama. Ela então saiu no bloco do clube (posteriormente o “Come-môsca”) que daria origem à Escola de Samba da Portela. Longo tempo ficou por lá. Conviveu com grandes sambistas: Gradim, Paulo da Portela, Bernardo Mãozinha do Estácio, Claudionor, Nininho, Ismael Silva, Noel Rosa (em cujo carro aberto, pelo carnaval, chegou a desfilar, isso já na década de 30). Cantou duas vezes nas sessões de candomblé e partido-alto realizadas na Visconde de Inhaúma, onde morava a legendária Tia Ciata. Ia também aos jongos e caxambus de Tia Dorothéa, em Oswaldo Cruz. Foi diretora do Unidos do Riachuelo e do Unidos de Engenho Velho, e sempre cantou assim, sem jamais sonhar em profissionalizar-se. Heitor dos Prazeres teve, há longos anos suas pastoras ensaiadas por Clementina, cuja disciplina é conhecida. Foi então que conheceu aquele a quem chama de seu anjo da guarda, Albino Pé Grande, que a arrastou para o casamento e também para a gloriosa Mangueira, onde fincou o pé e não saiu mais. É a oradora oficial da Ala da Velha Guarda da grande escola, e integrante da Ala das Baianas Velhas, que tradicionalmente desfila nas segundas-feiras gordas de carnaval. Este disco não esconde a pretensão de abrir um caminho de pesquisa. O jongo, dança dramática afim ao samba rural, aparece aqui fixado em sua trama polirrítmica. Vamos ter oportunidade de escutar outras modalidades de samba: a “batucada”, de interesse mais restrito, e um “partido-alto”. Uma antiga tradição das rodas de samba poderá aqui ser observada: usava-se, em grande escala, fazer-se samba sem segunda parte, deixando-a “ad libitum” daqueles que, na roda, se aventurassem a acrescentar um verso inspirado.

“Barracão é Seu” é bom exemplo: a segunda se desdobra em duas quadras. Poderia denominar-se, genericamente de partido-alto? Creio que não. Partido-alto entende-se por um refrão (geralmente curto) seguido de um improviso que se faz toando a rima com o último verso do refrão. Ismael Silva discorda de alguns desses pontos de vista: no seu entender, Piedade é mais batucada do que partido. Este, de certa forma, se aproximaria, nos moldes antigos, da chula raiada, onde se improvisava nas cordas, partindo de um tema vocal. O assunto é bem complexo e dá margem a muita pesquisa. Diz o grande sambista desconhecer, por exemplo, o termo “partideiro” — para mim aquele que “tira” versos de partido-alto. Mas a denominação é hoje comum nas rodas de samba. Que outra denominação daria, por exemplo, a João da Gente? Ele participa desta gravação como convidado especial, depois de longo tempo afastado do disco (gravou na extinta Brunswick, no grupo de Paulo da Portela). Não foi à toa que em Barracão é Seu deixamos a faixa atingir quase sete minutos, tal o ânimo despertado pelos improvisos de João e Clementina, e que acabou contagiando a todos. Aliás, o clima que se procurou manter nesta gravação foi o de espontaneidade, tão necessária a manifestações populares desse gênero. Para quebrar a rigidez e frieza de um estúdio de gravação, em tudo parecido aos demais existentes em todo o mundo, não faltou sequer o incentivo generoso de um bom uísque nacional, cuja marca deveria constar da ficha técnica, de tal forma motivou a euforia bastante visível nas diversas faixas que compõem este elepê. O maestro Nelsinho não se restringiu à condição de assistente musical do disco. Contagiado pela alegria de todos, foi desencaixar seu trombone de vara, juntando-se ao grupo acompanhador, com o talento que nunca por demais será louvado. Difícil fazer destaques: nas cordas funcionaram os patrimoniais Canhoto (cavaquinho), Dino e Meira (violões) e Luiz Marinho, no contrabaixo. Na percussão, Elton Medeiros (pandeiro), Jorge Arena (alabaques, caixa e bombo), Marçal (cuíca e pandeiro, às vezes no chamado toque “pé chato”) e Ary Dalton (tamborim). Essa constituição rítmica, no decorrer da gravação, sofreu alterações. No caro, João da Gente, Paulinho da Viola, Zàzinho, Erasmo Silva e Copacabana. O repertório foi selecionado com a intenção específica de se mostrar a diversidade e riqueza de nossa música popular. Precisar a origem e autoria de alguns desses cantos já se torna impossível. De velhos sambistas e jongueiros remanescentes das rodas de samba e candomblé do princípio do século, tenho imprecisas informações. Mesmo Clementina é fonte insegura, tamanha a quantidade de seu repertório. O disco está assim distribuído:


F A C E  A
PIEDADE (partido-alto) – tradicional 
CANGOMA ME CHAMOU (jongo) – tradicional
BARRACÃO É SEU (samba) – tradicional
(participação especial de JOÃO DA GENTE)
TAVA DURMINDO (moda mineira) – tradicional
ORGULHO, HIPOCRISIA (samba) – Paulo da Portela

F A C E  B
COLEÇÃO DE PASSARINHOS (samba) – Paulo da Portela
GARÇAS PARDAS (samba) – Zé da Zilda-Cartola
ESTA MELODIA (samba) – Bubu-Jamelão
TUTE DE MADAME (batucada) – tradicional 
VINDE, VINDE COMPANHEIROS (canto de pastorinhas) – tradicional 


PIEDADE — Este partido-alto (cortado) foi gravado no improviso, sem nenhuma convenção especial. João da Gente e Paulinho puxaram o partido nas palmas. CANGOMA ME CHAMOU — Dois atabaques (Elton e Paulinho) e as palmas de João registram a difícil rítmica do jongo, gênero cujo remanescente mais antigo parece ser mestre Rufino, hoje isolado e distante das coisas da música. À dramaticidade dos versos junta Clementina uma força vigorosa que nem a estafa de final de gravação apagou. BARRACÃO É SEUClementina e João, inspiradíssimos, improvisaram segundas desdobradas para este lindo samba. A introdução é feita pelo violão de Meira, e nada menos que 16 improvisos foram registrados nesta faixa. Há um “tombo” de Clementina, quando ela ia rimar “dar” com “devagar” mas acabou-se atrapalhando na colocação da variação pronominal, com prejuízo da rima. Reparem como João segue a escola de Paulo da Portela (vide Coleção de Passarinhos), num delírio laudatório: Cartola, Ismael, Paulo, Maestro Fon Fon... o verso do “balaio”, dito por João, é aproveitado por Clementina logo adiante, mas ligeiramente modificado.

TAVA DURMINDO Clementina entra “à capela” nesta toada (moda) mineira, que aprendeu com seu pai, quem sabe o autor da obra? Pedi a Meira que improvisasse em cima do acompanhamento de Canhoto e Dino. Informação: Clementina canta “variado” ao invés de “variando”, que é o certo — e poeticamente mais forte. Um equívoco que não se ousou corrigir, tal o sentimento de que estava possuída a partideira. TUTE DE MADAME — O entusiasmo é tanto que se pode escutar João da Gente numa justificadíssima euforia “muito belo, muito belo”), e a batucada pega fogo com Clementina soltando seus “Ielelês” sobre o refrão que tem uma nítida (e inexplicável) influência francesa, mais clara quando ela solta um verso arrevesado (algo como “je ne sais pas, mi sieur”). Com Nelsinho a todo vapor num improviso sensacional. ORGULHO, HIPOCRISIA — Este samba de Paulo da Portela foi gravado em 1932 por Mário Reis com o nome de Quem Espera Sempre Alcança, fato que eu, confesso, ignorava. Clementina cantava o samba incompleto. Incluí-o em seu primeiro concerto, escrevendo uma segunda para ele á maneira de Paulo. COLEÇÃO DE PASSARINHOS — É do mesmo autor, que nele homenageia um punhado de sambistas: o Bernardo (gaturamo) é Bernardo Mãozinha do Estácio; Lino (o canário) é Heitor dos Prazeres; Mano Rubens e Aurelio (o curió e o rouxinol, respectivamente), grandes bambas do Estácio. Essa característica laudatória é marcante em João da Gente, discípulo direto do “Professor” Paulo (assim se refere ao genial sambista portelense). GARÇAS PARDAS — Quando conheci este samba, faltava a segunda parte que provavelmente nem foi feita. Fui até a Zilda do Zé-com-fome, mas ela desconhecia o samba. O jeito foi encomendar uma segunda ao divino Cartola de Mangueira. ESTA MELODIA — Nesta faixa tenho a registrar a linda voz de Paulinho da Viola, no breque da virada do samba VINDE, VINDE COMPANHEIROS — É um canto de pastorinhas, e que Clementina cantava nas folias de “seu” João Cartolinha. Procurou-se observar a sonoridade dos ‘ternos” que saíam acompanhando os agrupamentos

HERMINIO BELLO DE CARVALHO


Prod. Fonog.: Indústrias Elétricas e Musicais Fábrica Odeon S.A.
Equipe de Produção Artístico – Fonográfica realizadora deste disco: 
Assistente de Produção: Herminio B. de Carvalho
Assistente Musical: Nelsinho
Diretor Técnico: Z. J. Merky
Técnico de Gravação: Jorge Teixeira da Rocha
Técnico de Laboratório: Reny R. Lippi


Por Mila Ramos

FABRICADO E DISTRIBUÍDO POR FONOBRÁS – DISTRIBUIDORA FONOGRÁFICA BRASILEIRA LTDA. ESTRADA DO GABINAL, 1521, RJ CGC. 29.010.519/0001-32 sob licença de EMI-ODEON FONOG., IND. E ELETRÔNICA LTDA. INDÚSTRIA BRASILEIRA 1988 DISCO É CULTURA



Mila Ramos é fascinada por música e foi em seu trabalho com bandas cover em 2012 que encontrou uma nova paixão: o Music Business. Especializou-se em Marketing e Design Digital pela ESPM-RJ e somou seus conhecimentos ao mundo musical como Produtora Artística. Em 2017, entrou para o Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB). Lá chegou ao cargo de Coordenadora de Comunicação e, sob sua gestão, conquistaram o Prêmio Profissionais da Música 2019, e o Programa Aprendiz esteve entre os finalistas de 2021.



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