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“10 Anos de Triunfo” de Quem Agora Está Aqui!

Por: Gabriela Rodrigues

terça, 06 de novembro de 2018

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Ingressos esgotados, filas que se encaracolavam pelos arcos da lapa e um público lotado de blacks que ocuparam o Circo Voador com muito estilo, poder e fome de representatividade.

“Olha como elas vêm: Cheia de gana, cheia de marra...” e foi assim que a menina veneno, Drik Barbosa, abriu o show no palco do Circo com uma pancadaria personificada na voz da mulher preta do rap nacional. Com sua irmã, a backing vocal Kelly Souza, a cantora – que tem sua trajetória firmada há mais de 10 anos – falou sobre amor, política, luta das mulheres e questão racial, bem como agradeceu ao Laboratório Fantasmagravadora musical brasileira criada pelo Emicida – que a ajudou na caminhada pelas trilhas deste gênero e lançou o trabalho da rapper, mostrando ao mundo o seu novo e primeiro EP “Espelhos”

A todo o momento o coro de vozes clamando por #EleNão fez com que a artista se pronunciasse, dizendo “falam que não devo misturar política na minha música mas vou falar de política sim, rap é política, e vou firmar meu posicionamento enquanto mulher preta das quebradas” e o público foi a loucura. Entre rimas, melodias, flows, beats, porradaria poética, a música PARA. No meio do show de abertura, a equipe toda é ovacionada aos gritos de “diva”, “eu te amo”, “você nos representa”, Drik se emociona junto à multidão que lotou a casa.


Uma abertura que mais parecia um espetáculo completo, tanto pela competência artística da compositora quanto pelo resultado em si. Transitou entre rima pesada, melodias que contavam a sua história, declarações de amor, voz e violão e ainda a artista fez com que todos os ocupantes do espaço dançassem ao som de uma de suas canções, como um grande Baile Black Rio dos anos 70. A abertura fez jus ao que estava por vir. O “MC Homicida”.

Quando o apresentador da lona deu as boas vindas ao rapper Emicida, os fãs foram ao delírio. O volume dos gritos tornaram-se ensurdecedores. A banda começou a tocar a música “Bang”, sem o cantor ainda aparecer: 

“Quem é quem nessa multidão? Hei, olhe ao seu redor, camarada. Pra que as trevas não levem seu brilho. Pra que as coisas não saiam do trilho...”.

SILÊNCIO. ESCURIDÃO.

O telão se acende com uma cena do filme “Ó paí ó”, onde os atores Lazaro Ramos e Wagner Moura abrem um diálogo:

“Que exemplo o que você é negro, você É negro, VOCÊ é NEGRO, VOCÊ É NEGRO!” E Lazaro diz “Eu sou negro, eu sou negro sim. Mas por um acaso negro não tem olhos, Boca, em? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentido, Boca, em? Não come da mesma comida? Não sofre das mesmas doenças, Boca, em? Não precisa dos mesmos remédios? Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual um branco, Boca, em? Quando vocês dão porrada na gente a gente não sangra igual, meu irmão, em? Quando vocês fazem graça a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente, porra, a gente não morre também? Pois se a gente é igual em tudo, também nisso vamos ser, caralho!”.

A tensão é palpável, alguns da plateia choram, outros colocam as mãos no peito. E do nada a música recomeça, com uma batida grave, como alguém que esmurra um portão com muita força. Emicida aparece, olha para todos em silêncio e em uma sincronia perfeita, sem contagem regressiva, o coro canta “Neguinho o caralho, meu nome é Emicida, porra!” e o rapper cospe toda a resposta, que o racismo merece quando dá as caras, através de suas rimas. O público canta a letra do começo ao fim, em um coral surreal de vozes desprendidas das correntes que por muito tempo os calaram. Cada pelo do corpo se arrepia nota por nota, palavra por palavra. As lágrimas escorrendo pelos rostos. O show começou.


Desde que o funk deixou de denunciar as atrocidades que assolam as periferias e o povo negro no Brasil, o Rap tem segurado nas mãos todas as responsabilidades de ser um porta voz das denúncias e críticas que há muito permeiam nossa sociedade, mostrando que é compromisso. E não poderia ser diferente para com o Emicida. Pra quem já mordeu cachorro por comida até que ele chegou longe, e como foi longe. “10 Anos de Triunfo” registra o primeiro DVD da carreira do artista que, anunciando o retorno de quem nunca esteve aqui, coloca em foco a questão da invisibilidade e a falta de reconhecimento do negro perante a sociedade. Negro este que trouxe o rock, o rap, o funk, o soul, o jazz, dentre tantos outros elementos culturais e, mesmo assim, são minimizados a escravos não pertencentes a lugar nenhum, escravos estes que foram submetidos a tal condição e, quando libertos por acordos políticos, foram descartados a escória da sociedade, causando uma profunda carga de reparação histórica que, até os dias atuais, não foram devidamente ajustadas. A música do cantor coloca tudo isso em pratos limpos, une provas, reacende vestígios.

Apagado da memória histórica, cultural e musical do nosso país, o Rap, bem como a música negra, vem firmando seu pé e pisando bem no meio da ferida do racismo social e estrutural. Com letras pesadas, críticas amargas, denúncias estarrecedoras, ressurreição da cultura matriz afro e exaltação do poder black, o compositor traz em cada rima, uma facada na boca do estômago de cada ser em que sua canção – duramente poética – habita e retira o peso das costas de quem carrega há mais de 500 anos o peso das mazelas da escravidão.

A multidão queima o peito aos berros de “Boa Esperança”, música de denúncia histórica sobre nossos antepassados, frases como “O tempero do mar foi lágrima de preto”, enfatizando os fatos que ocorriam nos navios negreiros; “Meu sangue na mão dos radical cristão” e “Já viu eles chorar pela cor do orixá?”, lembrando a todos da catequização dos negros trazidos de países africanos e o embranquecimento de suas referências religiosas perante os colonizadores; “Sério és, tema da faculdade em que não pode por os pés”, o que nos refresca a memória a falta de pessoas de cor dentro das universidades, mesmo com a política de cotas; e “Os livro que roubou nosso passado igual Alzheimer”, acusando a falta do ensino de história e cultura afro-brasileira, mesmo com a aprovação da Lei 10.639, de 2003, que a torna obrigatória. O povo vai a loucura. É sua vez de por a voz na escuta.

“Hoje Cedo” e “Inácio da Catingueira” percorrem pelas paredes da fama por detrás da carreira do artista que prega sua negritude e tudo o que implica em sua ascensão no cenário musical brasileiro. Nas frases “Que fita, meus poema me trouxe onde eles não habita. A fama irrita, a grana dita, 'cê desacredita?”; “Tudo que um black faz dá estresse compete frio. De rima epidêmica à tese acadêmica”; “Hennessys, avelãs, camarins, fãs, globais. Mano, onde eles tavam há dez anos atrás?”. Ele ainda provoca em “Com uma mixtape, fiz minha primeira revolução. Nas cabeça igual lace, prestenção. Só no Fashion Week, nóiz empregou uma preta pra cada textão” e “Quem diz que eu vendi minha alma. Descende de quem dizia que eu nem tinha uma”. Irônico, fugaz, arrebatador MAN... ManDU... MANDU... MANDUME! MANDUME! MANDUME! MANDUME! As vozes que ecoavam do Circo Voador clamavam por uma das músicas que mais denunciam todas as questões, desde racial até o feminismo negro, com exaltação da religiosidade afro e representatividade. 

E assim, começou o nocaute final que é “Mandume”. Drik Barbosa reaparece no palco gingando em suas rimas sobre feminismo das pretas que bate forte e ainda explicita um caso que até hoje não se tem solução “Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não raia”, que enfatiza o ocorrido da morte de Claudia Silva Ferreira, arrastada por uma viatura da PM por 300 metros na Estrada Intendente Magalhães, na Zona Norte do Rio, aonde os seis policiais acusados do crime estão soltos e não foram sequer julgados até hoje; exalta também a irreverência de um dos ídolos do soul brasileiro “Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia, um dos grandes responsáveis pela propagação da Black Music no Brasil e termina com “Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de arrancar cabeça”. Nos versos do Amari o apagamento da representatividade negra é evidenciado quando fala “Mas mano, sem identidade somos objeto da história” e coloca o negro no seu devido lugar de onde nunca deveria ser sido arrancado, o seu trono de rei e rainha, porque “Protagonista, ele preto sim”. O queer rap LGBT, Rico Dalasam, injeta as batidas do funk no rap para falar de resistência “Pior que eu já morri tantas antes de você me encher de bala. Não marca, nossa alma sorri. Briga é resistir nesse campo de fardas”. Muzzike, “o filho de faxineira” faz duras críticas aos playboys que não sentem na pele a realidade que o rap prega e querem, a todo o momento, se apropriar da luta dos que estão na guerra diária para venderem uma causa que não lhes representa, “Cês vive da minha cicatriz, eu tô pra ver sangrar o que eu sangrei”; “Tá pra nascer playboy pra entender o que foi ter as corrente no pé”. As religiões afro são enaltecidas e homenageadas por Raphão Alaafin “Canta pra saldar, negô, seu rei chegou. Sim, Alaafin, vim de Oyó, Xangô”; “Não temos papa, nem na língua ou em escrita sagrada”; “Sem eucaristia no meu cântico. Me veem na Bahia em pé, dão ré no Atlântico”; “Uns apontam pra Lisboa, eu busco Omonguá”. Homicidamente o mestre de cerimônias da a cartada final e relembra um dos grandes cantores dos anos 70 “Ao ver o Simonal que cês não vai foder”, denunciando o que aconteceu com o primeiro artista negro a ter um programa televisivo em plena ditadura militar e que se envolveu em uma situação polêmica. No telão a imagem quase que sagrada do Mestre Moa de Katende aparece juntamente com a frase “O ódio não vai vencer” e o choro se torna livre, o tempero do Brasil também foi lágrima de preto.


Lavada nossas almas, os blacks são revigorados com uma mensagem de paz, amor e orientação para cuidarem uns dos outros e fazer valer a palavra “Ubuntu, eu sou porque nós somos”. Músicas como “Baiana”, “Mãe”, “Pantera Negra”, “A Chapa é Quente”, “Madagascar”, entre outras, acalmam os ânimos e se tornam um acalanto para a alma. O rapper Emicida ainda falou sobre o momento político atual, “antes era por bom senso, hoje é uma questão de sobrevivência”; e da importância de nossa missão em proteger os irmãos. Ironizou a questão sobre a polêmica da Lei Rouanet vigente e falou “disseram que a Lei iria acabar pra mim, eu não entendi nada, nunca fui beneficiado por ela, minha Lei Rouanet são vocês”. O artista também se lembrou do novo livro chamado “Amoras”, fruto de uma música composta em homenagem à filha, exaltando a beleza das crianças negras e até tirou onda como escritor. Em uma de suas falas finais, o músico disse que “a gente vai ao Shopping, pro Banco, pra Rua e os caras nos seguem, eles olham pra nossa pele, pro nosso cabelo, pra nossa roupa. Podem olhar, olhem mesmo, olha pro preto livre que eu sou, todos os olhos em nós, somos protagonistas”, e sua música, em parceria com a Karol Conka, explodiu a galera que batia no peito e balançava seus cabelos com orgulho.

O show encerrou com muito axé e todos cantando ao som de “Ubuntu Fristili”, era de se arrepiar, ver os irmãos e irmãs cantando livremente, com seus cabelos sararás, suas vestimentas da paz em uma afro centralidade que emanava de suas almas. “Axé pra quem é de axé. Pra chegar bem vilão. Independente da sua fé. Música é nossa religião”

Sem dúvida a missão foi cumprida. Um show que deu aula de cultura e história africana, debateu o racismo vigente no Brasil e colocou em foco as pérolas negras que há muito foram enterradas. O show do “Glorioso retorno de quem nunca esteve aqui” só está começando. Aguardem as cenas dos próximos episódios.


Encaminhado por: Gabriela Rodrigues
Fonte da imagem: Augusto Cesar



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